sábado, 17 de dezembro de 2011

PRA FERIR O CORAÇÃO


                 “Pai, o senhor não vai acreditar, mas, eu já sei ler e escrever. Desde que, aqui cheguei ao Céu, um anjo de luz vem me ensinando o alfabeto dos homens. Nos primeiros dois segundos, eu aprendi a língua dos deuses. É uma língua difícil, se escreve de trás para frente. Mas, eu já sei responder às perguntas dos anjos e até decorei os conselhos de Deus.
                 A gente aqui acorda cedo para receber, cada um em seu setor divino, as orientações do Criador. Talvez, o senhor não vá acreditar, mas, mesmo os anjos mais poderosos sentam-se junto a nós na hora do manjar. Até Deus, quando pode, fica com a gente nos dias especiais.
                 Outra coisa que eu queria te dizer, pai. A tia Sara é quem cuida dos meninos, do Israel e do Samuel. Só não vi aqui o tio Abrão. Um anjo me disse que ele está noutro lugar. Perguntei onde era, mas, ele não respondeu. O senhor precisa ver, pai, a tia Sara está mais bonita do que antes. Ela casou-se com um profeta chamado Jeremias.
                 Pai, o Ezequias mandou lembranças. Ele me disse, um dia desses, que vocês aí embaixo precisam ‘limpar’ o nome dele. Ele afirma, com a maior das convicções, que nunca se ‘encostou’ numa macaca. A Irmã Atalia criou, como vingança, toda aquela estória. Só que eu não posso falar mais sobre isso. Faz parte do contrato que assinamos, quando aqui chegamos ao Céu.
                 Já o tio Lamec, coitado, nem toda a alegria celeste lhe retira da solidão. É um dos poucos, dentre tantos bilhões, que não se acostuma com a doce vida no Céu. A ausência daquele violão dos cultos é como uma mulher amada, um parente que morreu.
                 Por falar em bilhões, pai, estamos vivendo um problema de superlotação. Todos os anos, os anjos promovem gigantescas operações de mudança de domicílio celestial. Milhões são transferidos para outras galáxias nos domínios de Deus, abrindo vaga para aqueles que chegam. Mas, há uma bela regra que nunca é desrespeitada: as famílias sempre ficam juntas na mesma galáxia.
                 Pai, preciso lhe contar um segredo. Ainda não completei quinze anos. É que, aqui no Céu, um ano terrestre não passa de um segundo. Por isso, como o senhor já sabe, a vida aqui é eterna. Só que o inverso, pai, também é verdadeiro. Um segundo divino, quando chega à terra, como frágil gameta, transforma-se em um ano. Isso significa dizer que, sessenta bilhões de anos, na terra, são dois mil anos no Céu.
                 Calcule isso, pai, e o senhor vai descobrir porque a atração humana pelo Céu é tão forte e mágica. Imagine Jesus, aquele homem que o pastor disse que era Filho de Deus. Ele nasceu há dois mil anos, mas, é como se tivesse sido há uma hora atrás. Aqui no Céu, esse tempo multimilenar representa apenas dois mil segundos. Se, para vocês, Jesus morreu há dois mil anos, para nós, aqui no Céu, foi há menos de quarenta minutos.      
                 Sei que o senhor não vai saber calcular, eu também não sabia. E como ia saber, no meio da floresta, analfabeto e ferido pelos ‘cipós-de-fogo’, piuns, muriçocas e malária? Hoje, pai, eu sei a idade dos anjos e, aproximadamente, entendemos a idade de Deus.
                 Só queria pedir-lhe um favor, pai. Não conte esse segredo para os eruditos, os teólogos e os doutores. Conte apenas aos tios e tias sobreviventes de Lavras. Fica por sua conta e risco contar ao ‘Mapinguari’, à Caipora’ e ao ‘Batedor’ do rio. Ao padroeiro que abandonamos e ao vento no milharal.
                 Pai, contei-lhe o mais cobiçado dos segredos, para poder dizer-lhe da minha agonia. Da mesma forma intensa que o senhor quer a imortalidade, eu queria voltar para casa. Imagine, pai, que todos esses anos da minha ausência na terra, aqui representam, apenas, nove segundos.
                 Pai, a eternidade fere como uma lâmina de sal. Daqui de cima, como uma águia sagrada, ver tudo que acontece na terra dos homens, debaixo do sol. Testemunhar crimes, desastres e mortes. E nada poder fazer. Sequer, poder orientar as tuas caçadas ou ‘espantar’ as graúnas da tua plantação. Sob meus olhos eternos, como um livro de fogo, nascem e morrem civilizações.
                 Sei que estou ferindo o teu coração. Mas, eu queria voltar para casa, para o colo de mamãe, para as minhas pescarias. Fazer do orvalho a minha vestimenta, dos meus medos, a minha romaria.
                 Te perdoar e tomar um banho de rio”.
                   
                                               Judá, 13 anos, assassinado pelo próprio
                                         pai, Elias, em 17 de novembro de 1998

Nota do Blog: Esse texto é o epílogo do meu livro O SANTO DE DEUS, aonde Judá (nome fictício) envia uma carta ao Pai, que matou o próprio filho, acreditando que fazia a vontade de Deus, num profundo ato de embrutecimento espiritual e fanatismo religioso.

Somente quem mora em Tarauacá conhece os personagens de O SANTO DE DEUS e entende a trágica história dos seguidores do pastor Jacó (fictício).

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