domingo, 10 de abril de 2011

Contos de Domingo


O TABACO DA CAIPORA
                        Um cansaço titânico dominava o meu corpo, era como se eu tivesse caminhado do Ceará ao Acre. O balde de leite já estava vazio. Uma "péla" de borracha repousava, acanhada, no fundo do defumador. Se aquele amontoado de leite defumado fosse dono de um grama de sensibilidade, como uma dama teimosa, teria me confessado:
                        Bastião, tu estás a queimar a minha pele!
                        Fiz de conta que não ouvi! As últimas colunas de fumaça do defumador perdiam-se por entre os galhos de um frondoso e triste pau-d'arco. Luzia, com os seus olhos acuados, enrolava um porronca. Na última brasa, meio morta como a minha saudade, acendi aquele velho companheiro. Traguei! Suspirei! Comecei a refletir! Aquela péla, de vinte e poucos quilos, fruto de meia noite e meio dia de trabalho, não daria, sequer, para comprar um par de sapatos para reverenciar o meu santo padroeiro.
                        Meia dezena de meninos pálidos, em algazarra, seguiu-me até o porto onde, feito um sapo coaxando, eu lavei o meu corpo. Sentado sobre uma tábua, no barranco, fiquei a contemplar meus filhos brincando com a água. Minhas mãos calejadas e toda a minha luta, como uma mancha de vergonha, não davam para comprar outros brinquedos. Eles contentavam-se com a água gélida do rio! Ali, inconsolável, prostrei-me a dissecar a alma dos meus filhos. Cinco, nove e treze anos. Eram tantas as idades! Não sabiam, sequer, tatear uma única letra do alfabeto. Rústicos, dentes apodrecidos, eram verdadeiros discípulos da minha utopia, voltar, um dia, à bela terra de meus pais. Discípulos, também, da minha agonia, não seriam doutores, continuariam minha obra invisível e a minha canseira, cortar a pele pródiga das árvores!
                        Os pirilampos e a sua algazarra luminosa! Uma coã, qual notícia da morte de um irmão, rasga o seu canto desafinado e triste. Meu cachorro, solidário, lambe as feridas enfezadas, construídas nos cipoais, de minhas pernas impacientes. Luzia prepara a bóia. Os meninos beliscam-se, riem e recebem uma advertência por suplantar a voz do radinho de pilha. Este, feito um doente terminal a pedir água, conta o que se passa na cidade. Uma voz bonita, deformada pela velhice das pilhas do rádio, anuncia uma festa na casa do delegado, o aniversário do padre, a viagem do intendente, a gravidez da esposa do juiz e a festa do padroeiro. Fiquei triste no meu abandono!
                        Nesse momento, os olhos pálidos de Luzia cruzam-se com os meus. Desnecessária se fez a palavra. Minha castigada esposa se ressentia daquela vida malvada, enquanto, na cidade, toda aquela gente divertia-se à custa do meu suor. E nem um convite de aniversário chegou à minha colocação. Coitado! Estava tendo início mais um delírio. O que os doutores conversariam comigo na festa? Se até o mutá, quando ouvia meus enfezos e minhas agonias, ficava calado feito uma mula! Engoli um bocado de pirão, a colher irritou-se com os meus dentes pubos, um pedaço de carne de cotia e lavei a boca com a água do rio. Queria engasgar aquela convulsão que cortava a minha alma. Mais um porronca e busquei o caminho da rede. Vi que Luzia debruçava-se sobre o jirau e, sem dizer-me, lavava os pratos e a sua tristeza.
                        A rede balança como a vida dos deserdados. Os meninos espremem-se no outro in-cômodo. Luzia está a trocar o vestido! Pelo menos as pernas fibrosas de Luzia, meu Deus - blasfemei - afogam meus desejos impublicáveis! Único prazer que não me roubaram os coronéis do ouro elástico. Destruíram, todavia, os seus encantos! Luzia despe-se! Coloca-o sobre um velho banco no canto do quarto! Uma toalha maltratada por quatro anos envolve o seu corpo castigado. Ouço quando Luzia, feito uma jaçanã arredia, chama Irene, minha filha do meio, para acompanhá-la até o porto. Luzia, depois de duas horas da fuga do sol, quando a noite protege dos abelhudos, vai tomar o seu banho.
                        Acendo mais um porronca. O meu pequeno Francisco tosse no outro quarto. Uma infecção pulmonar mal tratada ou o acre odor do tabaco? Luzia, apesar dos seios flácidos e a pele transgredida, retorna com o cheiro do rio. Meu corpo afugenta a ruçara insistente e o cansaço do balde e do sacutelo. Luzia acomoda-se, dengosa, dentro da rede. O sangue desenvolto da digestão, conectado à pele quente de Luzia, apressa-se, em romaria, pelo meu corpo.
                        Um ritual biológico, mesmo no cérebro de um pária como eu, vai dominando meu corpo encharcado de Caipora. Minhas preces roucas e minhas macumbas sombrias escondem-se no neurônio mais enferrujado do meu chassi cerebral. Como se eu fosse um peixe Crossopterígeo das águas do Devoniano, preciso coordenar meu olfato para sentir o cheiro do rio no corpo de Luzia, concentrar minha audição primitiva para ouvir os seus gemidos pálidos - se ela geme alto, a corrente de ar intromete-se, levando-os, pelas brechas da paxiúba - e equilibrar-me na rede, como um quelônio no balseiro. A visão não serve p'ra mim! Preciso regular a temperatura do meu corpo - megatons de oxigênio invadem as minhas veias - e controlar a circulação do meu sangue revolto.
                        Cento e cinqüenta milhões de anos se passaram - e eu apalpando Luzia - para que me tornasse um réptil dentro de uma rede impertinente. O Complexo-R, como se eu fosse um réptil, um dinossauro, aguça meu estado de agressão. Estou enfiando minhas unhas na carne nua de Luzia. A sinfonia noturna das vozes da mata vai reduzindo os seus bemóis. Feito um mamífero noturno do Carbonífero, seqüestro o meu sistema límbico para utilizar na sucção teimosa dos seios de Luzia. Sessenta milhões de anos de pura paixão, feito um símio braquiador - lembrei-me do guariba da janta de ontem à noite - para que eu percebesse todo o corpo de Luzia. Fiquei em dívida com o meu cerebelo, por fazer-me notar que os meus braços e as minhas pernas estavam grudados nos braços e nas pernas de Luzia. Um orgasmo vulcânico esparramou-se sobre as pernas maltratadas de Luzia!
                        Fumando um porronca, como se estivesse degustando o néctar dos deuses, percebo que os meus cérebros primitivos adormecem. Meu neocórtex, como um fantasma biológico, leva-me de volta à vida. Forçando a articulação dos músculos da minha laringe, ele ajuda-me a dizer, baixinho: te amo, Luzia! E, compadecendo-me dos meus bruguelos, lembro que tenho a encher de leite de seringa - bem mais frio que o leite que deliciou Luzia - um balde e umas tigelas. A madrugada, maldita, castigando o meu corpo, empurra-me, gélido, para a floresta!
                        O vento da madrugada é um vulcão de gelo maltratando o meu corpo. Os galhos da envireira estão pálidos. Se eu tivesse mais de um cobertor - o meu está roto e esburacado - cobriria a pele fria dos galhos. Eles sustentam a minha rede e a minha agonia. Luzia, coitada, ficou numa rede sem cobertor! Vozes roucas rondam a espera. Minha velha espingarda está como uma menina no encontro com o amante. Quer dividir o seu fogo com os enigmas da floresta e fazer estancar o sangue da primeira caça que aparecer sob a "espera". Já cuspi algumas dezenas de vezes! Um novo naco de tabaco bruto está sendo mastigado por meus dentes pubos.
                        Insistentes, vozes roucas rondam a "espera". Um calafrio percorre o meu corpo. Meus tímpanos desativados sentem que algo sinistro navega nas correntes de ar. Como a notícia da morte do meu caçula, ouço uma voz:
                        - Bastião, me dá um pouco do teu tabaco!
                        O calafrio que atinge o meu corpo esmaga o meu raciocínio tacanho e as batidas do meu coração. Trêmula, a luz da minha lanterna tateia a geografia da "espera". As vozes da mata silenciam! Bacuraus e saracuras amedrontados! Nada sob a luz dos meus olhos! Confesso a mim mesmo:
                        - Acho que dormi e tive um pesadelo!
                        A sinfonia triste da floresta vai reabrindo em lá menor. É como se uma jaçanã, teimosa - parafraseando Drummond - dissesse:
                        - E agora, José?
                        Confesso que a minha valentia de nordestino foi tragada por aquela voz assombrosa! Estou há dezenas de quilômetros da morada mais próxima, a minha choupana. Meu cérebro me reanima:
                        - Deve ser um caçador perdido de outra colocação.
                        O silêncio volta a sentar-se no trono da mata. Aflito, mastigo o terceiro naco de tabaco. O tapir não aparece para degustar a birindiba, a maçã da floresta. Naquela noite assombrosa - parece-me - a anta pariu na alcova selvagem. Talvez, assim, haja explicação para a ausência do macho na "espera". Mesmo com fome, o tapir está protegendo a cria. Estes pensamentos vão consumindo o tempo da madrugada e desviando meus neurônios daquela voz pavorosa.
                        - Bastião, por Deus, me dá um pouco do teu tabaco!
                        A mesma voz e o mesmo pavor! Um calafrio percorre o meu corpo, desmaio. Olho em todas as direções, com as unhas fustigo a minha carne. Estou acordado sobre a "espera". Tateio a rede, não encontro o meu tabaco. Agora, aquela voz assombrosa ganha um acorde humano:
                        - Não tenha medo, olhe para mim, Bastião!
                        Lentamente, como se mil ampolas anestesiassem o meu corpo, dirijo meus olhos na direção daquela voz impertinente. Perplexo, desconexo e amedrontado, vejo uma imagem formar-se sob a luz dos meus olhos. Tênues raios da madrugada infiltram-se por entre os galhos e os cipoais. O silêncio da mata agride meus tímpanos. Como uma mancha de sangue a formar-se sobre a folhagem, vislumbro a figura de uma mulher. Sua voz, estranhamente - no meu imaginário de duas décadas, era um ente maligno - é mansa, meio febril:
                        - Sou eu, Bastião, a mãe da mata, a Caipora!
                        Sobre uma raiz, tragando um porronca, está sentada a Caipora. Sua pele é negra como uma noite de inverno. Um pedaço de estopa cobre o seu corpo. Não tenho como detalhar o seu perfil! Quando, após tragar, ela expira a fumaça, percebo que os seus dentes estão enegrecidos e pubos. Pernas, ventre e seis cobertos! Seus cabelos, negros e abundantes, mais se assemelham a um cipoal após a tempestade. É muito feia a Caipora!
                        - Bastião, abandona o teu preconceito!
                        Sinto que a sua voz funciona como um poderoso ópio. Desaparecem os calafrios. Uma paz inominável invade a minha alma. A Caipora, novamente, exclama:
                        - Desce de tua rede, Bastião, vem conhecer a Caipora!
                        Lentamente, vou desfazendo a subida nos galhos da envireira. Meu sistema interno de alavancas não permite que, simultaneamente, eu desça da árvore e contemple a Caipora. Com os pés no chão, giro meu corpo em direção à Caipora. Um susto! De pé, a Caipora não tem mais a estopa sobre o corpo! Sobre o meu, um novo tipo de calafrio! Seus cabelos entaniçados permanecem. Todavia, algo espetacular encanta os meus olhos! Pernas torneadas e sedutoras! Um ventre fumegando desejo - como se a Caipora tivesse uma dezena e meia de anos - faz-me lembrar do ventre paquiderme de Luzia! A minha assombração aumenta quando a minha atenção concentra-se nos seios da Caipora! Rijos, dourados, mais parecem dois corações a pulsar! Meu êxtase aumenta na voz da Caipora:
                        - Abraça-me, Bastião, ajuda-me a destruir o meu enfurecido desejo!
                        Transtornado, aproximo-me daquele corpo que mistura beleza, embrutecimento, compaixão e desejo. Dentes, cabelos e unhas, sujos e enegrecidos. Neles reside o seu embrutecimento e a minha compaixão! Ventre, pernas e seios, encantadores. Neles estão a sua beleza selvagem e o meu desejo humano! Uma carga elétrica percorre o meu corpo. Diabos, ela veio através dos meus gânglios! Meu cérebro, maldito, está a comandar o meu corpo! Sua voz é quase um consolo:
                        - O que foi, Bastião, que desânimo é esse?
                        Uma mulher inconsolável e um cérebro de Homo Habilis. Sinto que um novo ritual biológico comanda o meu corpo. É como se eu estivesse habitando cavernas - há dois milhões de anos - e manuseando as primeiras ferramentas. Meu neocórtex, poderoso e indevassável, comanda e reelabora as minhas reações. Aprendi com os galhos das embaúbas, meu cérebro carrega as marcas humanas. Lembro-me, nesse instante, da minha Luzia! Os primeiros raios do sol sobre o nosso casebre trazem, para Luzia, os primeiros rasgos de preocupação. Minha compaixão cresce na direção do meu casebre. À pergunta da Caipora, resmungo:
                        - Estou preocupado com Luzia!
                        Retorno no tempo uns sessenta milhões de anos. Como um primata braquiador, estou a treinar a percepção dos meus braços e das minhas pernas entre os galhos. Flagro-me apalpando os braços e as pernas da Caipora. Faltam sessenta milhões de anos para nascer o meu neocórtex. A minha palavra, por entre os músculos da laringe, e a minha reflexão, inexistentes, nascerão pelo manuseio de ferramentas. Meu álibi é forte, delicio minhas mãos e meus neurônios na carne negra da Caipora. Ela respira o meu ar carbonizado! Como dois dementes, cada um, lentamente, vai sentindo o corpo do outro. Como é bom grudar o meu corpo no corpo da Caipora!
                        Duzentos milhões de anos recuaram na pré-história, enquanto meus dedos pesquisam o corpo da Caipora. Estou no carbonífero e o meu sistema límbico faz comportar-me como um mamífero. Na placenta, por nove meses, mais setecentas luas na sucção das mamas da fêmea, fiquei viciado. Nos seios malditos da Caipora, acaricio um e enterro no outro os meus dentes pubos. Naquela histeria surda, vou reconstruindo as minhas catacumbas e a minha história. Não percebemos quando estamos sobre as raízes, as folhas pobres ou enrolados na minha rede. O prazer é sem rédeas e bestial.
                        Fios de sangue sobre a pele negra da Caipora. Sou um réptil, um dinossauro. Minhas unhas indomáveis estão cravadas na carne selvagem da Caipora. Minha agressão anfíbia controla os meus desejos! Meu olfato primitivo sente o cheiro forte da mata e da Caipora. Ouço os seus gemidos. Equilibro-me sobre as raízes para não deixar o meu corpo desgrudar-se do corpo da Caipora. Cem por cento do meu corpo e da minha alma estão dentro dela. Meu chassi neural controla o meu sangue e a minha temperatura. Grunhidos inteligíveis brotam de nossas gargantas em fogo! Minhas veias explodirão! Meu corpo é um vendaval! Meu sangue vulcanizado! Um líquido morno e impaciente invade o ventre revolto da Caipora!
                        Sobre o colo negro da Caipora eu descanso da minha guerra. Combati preconceitos sobre o corpo humano. Desgastei meus instrumentos bélicos sobre uma carne selvagem e sem nome. Uma paz incontrolável domina os meus neurônios. Mais pareço um "leso" contemplando um mundo estranho. Como se não quisesse, a Caipora exclama:
                        - Bastião, vou contar-te a minha história!
                        Assombrado, perguntei:
                        - Que história tens, Caipora, além daquela de viver perambulando, triste, pelas matas?
                        - Eu, Bastião, não vivi sempre nas matas. Como vês, eu já fui uma bela mulher. No sertão deixei meus amigos e parentes para acompanhar meu amante.
                        - E quem foi teu amante, Caipora? Perguntei.
                        - Um jovem guerreiro nordestino que, para não morrer no sertão, convenceu-me a perseguir, na Amazônia, o sonho de enriquecer sobre o mutá. Partimos em direção a estas belas matas. Durante três anos dividimos um casebre de paxiúba e palha de jarina. Comíamos do que nos ofertava a floresta. Bebíamos das águas puras dos riachos e fazíamos amor sob o silêncio da sapopema.
                        Por que, então, estás aqui, Caipora? Duvidei.
                        - Um dia apareceu, na colocação, um jovem que mais parecia um guerreiro celestial. Meu marido estava na estrada-de-seringa. Aquele jovem encantou os meus olhos com a sua bela roupa, a sua linguagem e o seu perfume. Entreguei-me a ele como uma menina de seringal. Quando degustava a última ejaculação, ouvi os latidos dos cães.
                        - O que tem a ver a Caipora com latidos de cães?
                        - Meu marido apareceu no terreiro, com a sua espingarda, como se fosse uma cascavel. O jovem guerreiro, como uma cotia, recebeu no seu ombro um tiro de doze. Como um lobo, o jovem guerreiro reagiu e acertou o peito rústico do meu enfurecido marido, abatendo-o como uma cotia.
                        Por entre as bananeiras persegui o refúgio da floresta. Como um porco-do-mato, há uma dezena de anos, vivo comendo raízes e frutos.
                        - Caipora, eu te darei novo lar. Para ti construirei um casebre, longe do meu, e, uma vez por semana, te visitarei.
                        Raios teimosos do sol atingiram o meu rosto. Apalpei minha companheira. Apenas, uma espingarda fria.
                        - Diabos! Por uma noite estivera sob as garras tétricas de um pesadelo.

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