sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

“Onde não há poesia a vida pesa como chumbo”


A RECONSTRUÇÃO DA UTOPIA

Após esses anos sob uma nova experiência política, precisamos avaliar se ainda estamos conectados à utopia que nos fez chegar até aqui. Durante duas décadas nós e nossos precursores produzimos uma imagem: a imagem da luta cotidiana por dias melhores para o nosso povo. Nossa camiseta tinha imagem de greve, nossa voz trazia as sílabas da contestação, nosso rosto estava queimado pelo sol da oposição. Dizíamos que era possível governar sem roubar, construir estradas sem superfaturar, pagar salários em dia, financiar a agricultura, educar nossas crianças sem proselitismo, enfim, governar a favor da vida. Assim o fizemos! Pequenos erros pelo caminho e burras intolerâncias não invalidam a estrada que abrimos. Nosso povo vive melhor e decidiu, sabiamente, continuar no mesmo caminho.

Isso não quer dizer que não devamos avaliar em que estado se encontra a nossa utopia! Se ela vive, se renova, sobrevive ou se arrasta! Literalmente, utopia é um lugar que não existe, assim nos ensinaram os gregos. Serve como combustível para nos levar aos lugares mais próximos, tangíveis. Alimenta o nosso cotidiano e nos imprime a marca do horizonte que guarda o nosso humanismo ancestral. Sem o humanismo, nossas ações se verticalizam de tal forma que passamos a confundir pessoas com números e sentimentos com dados estatísticos.

O humanismo é o dado que falta na contabilidade da esquerda, a premissa que os revolucionários retiraram de suas conclusões e, finalmente, o elo que se perdeu no caminho das nossas utopias. Sem pretensão acadêmica ou arrogância política quero dialogar com os meus companheiros e camaradas sobre a utopia que nos levou à condição de administradores de algumas possessões da velha elite. É que não controlamos o poder econômico, o poder religioso (graças a Deus!) e tantos outros poderes que a elite controla desde que privatizou a vida. Só não conseguiu privatizar a lua!

Em 1998, aqui no Acre, nós conquistamos um pedaço pequeno da utopia. O lugar que alcançamos é apenas o poder estatal, pequeno como um quarto de dormir para poder comportar as multidões famintas e irrequietas que não cabem em qualquer rua. A partir daí a gente se dá conta: o poder político não resolve todos os problemas, o dinheiro não paga todas as contas (contas populares, desejos da maioria) e as nossas possibilidades são menores que as nossas utopias. O que fazer então para não produzir desencanto e decepção? Quando o emprego não vem para todos, a saúde, a moradia? É possível administrar tão poucos poderes, quando as multidões continuam aguardando os resultados milagrosos da nossa utopia?

Quando entramos numa repartição pública, num hospital ou numa fila de entrega de títulos de terra ou de cadastramento de um programa social, a gente descobre o segredo da Esfinge em que se transformou a nossa utopia.  Descobrimos, como um segredo idiota que se guardava a sete chaves, que o grande problema não está no quanto, mas na qualidade. E a qualidade nunca está fora, na carteira, nos bolsos, nas contas e orçamentos.

Ela dorme lá dentro, no colo de toda alma. Descobrimos que o cidadão não quer apenas um médico no hospital, quer mais, deseja alguém que o atenda com respeito, quer alguém que, além da roupa alva, tenha também as mãos limpas e carinhosas. Quer alguém que não o trate como mercadoria, mercadoria de segunda ou de primeira categoria, que não serve para o consultório particular, onde o aparelho não quebra, a secretária diz “pois não?” e a enfermeira não pára de sorrir.

Fomos vendo que a “vergonha” de estar numa fila de um programa social mata uma fome e deixa a outra intacta. Que é preciso construir outros hospitais, além daqueles de tijolo e argamassa. É preciso construir hospitais de humanidade e carinho na alma dos médicos de plantão, ganhar o sorriso da enfermeira, a educação voluntária do atendente, do porteiro, do vigia. Fazer aquele cargo comissionado, agarrado à sua maldita gratificação, perceber o quanto foi difícil a uma pessoa humilde chegar até o hospital, a qualquer secretaria.

Hoje já sabemos que vale a pena retardar o início de uma ação pública para dar tempo e condições de incluir o povo e suas organizações na decisão, planejamento e execução da mesma. Que um dos mais robustos alimentos da utopia é a participação popular! Vamos ganhando convicção aproximada de que a sabedoria do povo é infinitamente superior à capacidade dos burocratas. Que uma das marcas de nossa luta e, portanto, de nossa utopia, foi a soberania do coletivo sobre o individual.

O maldito poder temporal nos enclausura e nos distancia dos amigos, especialmente dos mais humildes. E, aqui, reside a tragédia: nossa utopia que não foi alcançada faz pairar um ar de desconfiança sobre os líderes. Muitos acham que não fazemos o que devia ser feito, desconfiam de que estamos mais ricos, mais orgulhosos, mais refinados.

Pensar sobre essas pequenas coisas, olhar mais pra dentro de nós e de nosso passado, pode ajudar a entender a crise braba que atravessa a esquerda. Organizar grupos de discussão, encontros de companheiros e de camaradas, pode ser a senha para encontrar o equilíbrio entre o poder e a utopia. Um final de semana, uma noite, um feriado.

O que sei é que estamos incompletos, o equilíbrio entre o poder e a utopia fica cada dia mais frágil e muitos companheiros e camaradas vão ficando pelo caminho. Devemos estar alertas, para que não chegue o tempo de alguém lembrar: “cara, vamos voltar, tem mais gente nossa lá atrás do que aqui nesse lugar”!

2 comentários:

Rayana Mirele disse...

Olá!
Seu blog é bastante interessante, sempre que posso dou uma olhadinha.
Se possível gostaria que se torna-se seguidor do meu blog: http://rayanamirele.blogspot.com/
Abraços!

Terra Náuas disse...

Moisés li cada palavra desta postagem e fiquei na verdade muito feliz com cada uma delas, pois expõe a clareza de sua visão sobre o que está chamando de "crise da esquerda". na verdade reacende em mim a chama da esperança. Não que estivesse morta, mas sempre que política revela seus limites para a utopia, volto para dentro de meu proprio universo para "arrumar a casa" dentro de mim. tenho uma visão clara do mundo que quero para meus filhos, mas compreendo também que a vida política é feita de avanços e retrocessos- a boa e velha lição da dialética e vejo que para um avanço maior dependemos também de uma transformação individual mais profunda, que tão bem Che nos ensina.

Um ponto específico de seu texto me chamou a atenção por se tratar da educação não -proselitista, pis tem me incomodado batsante vber que nas escolas públicas do governo do estado do Acre, os professores continuem fazendo o mais arcaico proselitismo religioso. Não é esse o mundo que eu quero para meus filhos.
Um forte abraço e desejo que continue semrpe firme na sua luta, com esta clareza.