domingo, 2 de janeiro de 2011

Em Homenagem à Primeira Segunda-Feira

Hoje é domingo, o segundo dia de 2011. O efeito da festa já passou e eu quero olhar para a cansativa e iluminada segunda-feira. Quero poder cuidar dos meus amigos e perdoar os meus inimigos, que quase não os tenho.

Publico aqui o relato do meu segundo dia de uma longa, cansativa e bela viagem que fiz ao Jordão, através do rio Tarauacá. A luta do passado será o meu avatar no presente, para nunca esquecer minhas origens, meus signos e a minha eterna utopia.


O segundo dia

Um vento frio, como o abraço da morte ou uma carícia na madrugada, atinge nossos corpos. Os pássaros aportam nas árvores-ninho e a floresta substitui a sua orquestra. Novos pássaros cantores assumem o trono sonoro da mata.

A noite, como uma deusa impertinente, desce sobre as praias ocupadas pela pororoca, atinge os galhos trêmulos das embaúbas e os barrancos em mutação. Com eles aprendo que tudo está em movimento e quem se cristaliza é porque deixou que a sua alma se tornasse mais pobre que um simples barranco.

Aportamos no seringal Volta Grande. Depois da janta, acendo um cigarro e subo a encosta do rio. Numa casa coberta de palha, enigmática e acolhedora, o seu Evaristo, aos 89 anos, me recebe com um sorriso largo.
                       
Há vários dias dentro de uma rede, tem as pernas infeccionadas. Dorme sentado e não pode colocar os pés dentro da rede. Logo na chegada, aceitou um cigarro e fumou mais do que eu, como a Caipora, nos setenta minutos em que conversamos.

Na verdade, foi quase um monólogo, pois perguntei mais do que opinei. Seu Evaristo lembrou do tempo em que, onde, hoje, é a Leal Maia, na beira do rio, existia uma “comida de anta”, lugar onde os primeiros “brabos” nordestinos armavam as suas redes na “espera”. Falou, ainda, dos grandes cargueiros, apinhados de nordestinos e sonhos, as festas no barracão, a primeira namorada e a mudança de costumes dos netos e filhos.

Não esqueceu de falar do Irmão José, o Santo da Amazônia. Percebi em sua voz um rasgo de mágoa, contra o Santo da Amazônia, por este não ter singrado o Murú e o Tarauacá. Despedi-me do meu velho amigo Evaristo com uma sensação estranha, como se estivesse a dizer adeus a um impressionante livro de história. Quatro meses mais tarde, seu Evaristo morreu. Soube pelo Zeca, seu filho, delegado sindical.

Retorno ao barco, onde meus amigos divertem-se no jogo de cartas, com um sentimento misturado no peito. Retorno menos impaciente e mais velho. Aprendi com aquele velho guerreiro a construir momentos de paciência. Esperar e construir.

A sua paz, a sua alegria, aos 89 anos, doente, fez-me gastar inestimável tempo a perscrutar as estrelas, a brigar com as águas do rio. Naquela catarse profana, uma melodia de saudade conspurcou minha paz, misturada à minha agonia. Tutelado por um gerador de energia, o pequeno aparelho de som permite que a voz de Fagner contagie os corações. A sua melodia fala de saudade e distância, incertezas e paixão.

Nas histórias do seu Evaristo, na sua resistência indomável, e naquela melodia, desconstruo a minha impaciência e a minha melancolia. Um último cigarro testemunha a minha fuga, fugindo daqueles pensamentos, busco os domínios silenciosos de Morfeu.

Os dias quentes e barulhentos misturam-se às noites silenciosas e frias. Uma contradição e um choque, a agredir nossos corpos e a nossa reflexão. O dia nos agride com a sua matéria forte, palpável e em ebulição e a noite, mais sutil, controla o nosso pulso e os nossos pensamentos. É mais forte a sua agressão! Silenciosa, penetrante e manhosa, a noite contorce nossas almas contrariadas, como uma serpente.

A nossa solidão, sob as suas garras, torna-se uma cadeia de vulcões. Até mesmo as nossas fugas maledicentes não estancam aquela sangria de ausência, onde, por imposição do silêncio e do tempo, colocamos no banco dos réus as nossas convicções.  Aqueles momentos, enjaulados nos domínios do cérebro, desocupado e volátil, como diz o povo da mata, “maltratam mais que traição de mulher”!

Não quis dizer, mas um sentimento invadiu a minha alma. Por que não acreditei que, naquele segundo dia da criação, numa inexplicável coincidência, “seu” Evaristo poderia ter sido curado pelas águas da chuva que beijaram o seu telhado?

Naquele dia, Deus criara a chuva e as águas, as águas primeiro, para que os homens lavassem as suas feridas e a podridão de sua ganância. “Seu” Evaristo não fora ganancioso, produzira para o sustento, dividira o fruto do suor com os vizinhos, erguera a voz em orações e, como dádiva, fizera a terra mais fraterna e melhor. Eu devia ter acreditado, insistido com Deus, como Abraão, para que Ele, por um segundo, olhasse as feridas do meu velho amigo Evaristo.

Até hoje, quando ele já subiu com o orvalho, eu sinto remorso em não ter acreditado que a minha fé no movimento eterno do cosmo deveria ser maior. O grão de mostarda, como um insulto, alojou-se nas minhas superstições.



Nenhum comentário: