domingo, 19 de dezembro de 2010

UMA SACOLA E UMA FERROVIA


Publicado no Centenário de Morte de Plácido de Castro

                    Art. III – O Brasil pagará ao Governo da Bolívia a quantia de £ 2.000.000 (dois milhões de libras esterlinas) em duas prestações de igual valor, vencendo a segunda parcela em 31 de março de 1905.
                   Art. VII – O Brasil construirá uma ferrovia, saindo do Porto de Santo Antônio, no Madeira, até Guajará-Mirim, no Mamoré, com um ramal que chegue à Vila Bela, na Bolívia.
                   À parte do Tratado de Petrópolis, o Brasil negociou ainda pequenas áreas de fronteira com o Peru e indenizou o Bolivian Syndicate. Nós acreanos, que tratamos o Acre como nação, com patriotismo, ouvimos essas notícias com normalidade. Mas se pedirmos para alguém que mora do outro lado do mundo externar uma opinião, receberemos um juízo ácido: “Rodrigues Alves era louco!” Outros vão dizer: “o Barão do Rio Branco se vendeu para os Bolivianos!”
                   Por que tanto dinheiro por um pedaço de terra de cento e cinqüenta e três mil quilômetros quadrados perdidos no meio da floresta assombrosa?
                   Látex! Um produto que, adicionado ao enxofre, ganhava elasticidade. Borracha! Descoberta por Charles Goodyear, em 1842. Revolução industrial, máquinas de guerra precisando se deslocar. O Acre estava no olho do furacão da economia em 1903. Assim, o Tratado de Petrópolis, assinado em 17 de novembro, foi uma decisão das elites do Brasil de comprar uma mina de ouro, o ouro negro da Amazônia. O heroísmo ficou aqui, nas mãos de milhares de seringueiros que verteram sangue em defesa da vida. A tragédia reside nos resultados da guerra de nossos pais!
                   100 anos depois, os seringais sangram de dor, os bisnetos daqueles guerreiros estão enterrados nos presídios e nas periferias dos acampamentos em que se tornaram as nossas cidades. Por isso, chegou a hora de abrir os museus! Onde estão os milhares de seringueiros que lutaram ao lado de Plácido de Castro? Onde estão suas fotos? Onde está registrada a sua história? As fotos de seus bisnetos nós as encontramos nos prontuários das delegacias!
                   Precisamos que sejam respondidas algumas inquietações da alma acreana. Por que ainda existem 33% de acreanos vivendo na floresta, apesar de tudo?
Por que só o Governo do Estado subsidia a borracha? Por que as prefeituras, que estão mais perto das dores do homem da floresta, não seguem o exemplo da Lei Chico Mendes, criada em 1999? Falta de dinheiro?
                   Estou cada vez mais convencido de que as elites urbanas têm medo do homem da floresta. A ausência da perversão, das drogas, da prostituição, do alcoolismo que desonra e mata produziu na floresta um jeito de viver que incomoda as elites. Partilha, nobres sentimentos de solidariedade, pureza da alma, são valores que inquietam almas dominadas pela cobiça e pela insensibilidade. Melhor arrancá-los de lá, encharcá-los de álcool e desamor, despir-lhes de sua cultura, sua linguagem. Enfim, fazer com o homem da floresta, o que fizeram com os povos indígenas. É o que se lê nas linhas que as elites urbanas escreveram nos últimos cem anos.
                   Não me abato porque tenho mais um convencimento. Da mesma forma que os povos indígenas reconquistaram a terra, a língua, a cultura e a dignidade, o homem da floresta vai seguir o mesmo caminho. Assim como os povos indígenas, milhares de homens e mulheres voltarão para casa. Descobrirão que a melhor trincheira para lutar é aquela onde a gente conhece os detalhes do terreno. Na floresta se reorganizarão! Lutarão por escola e saúde, transporte e produção. Cultos e missas, festas sadias, jogos e manifestações culturais. Descobrirão que, lá na floresta, é mais fácil não morrer! Estarão mais longe dos presídios, das bocas de fumo, da prostituição.
                   De tempos em tempos ocuparão a cidade! Será mais forte do que ocupar uma repartição. Ocuparão as cidades e dirão: “vocês fiquem com o seu iptu, nós queremos nossa parte no imposto da nação”. Então, não vai mais aparecer um bacana dizendo o que é bom para a floresta, olhando pra lá sempre com um olho urbano. No lugar de se reunirem nos botecos da periferia, para beber álcool e se matar uns aos outros, se reunirão na igrejinha para celebrar e discutir o próximo verão. Terão na floresta o que de bom se tem na cidade. Hoje, eles só têm da cidade e na cidade os seus dejetos e as suas porcarias!
                   Nos cansamos de caricaturas públicas, onde as sobras se destinam ao homem da floresta. O começo será de indiferença e de incompreensão. Depois virá a luz! Mais homens e mulheres entenderão que o modelo ocidental faliu. As cidades estão podres por dentro e estão a contaminar os seus habitantes. Reconstruiremos o homem a partir das suas convicções originais, adulteradas no caminho, e só descansaremos quando o último dos sobreviventes puder dizer àquele que está próximo: “hoje encontrei um lugar onde respira em paz o meu coração!”
                   Quando isso acontecer, largaremos as esmolas, os subsídios. Nós mesmos encheremos as nossas sacolas e construiremos a nossa ferrovia!

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