Moisés Diniz*
Nesses
meus desassombrados cinquenta anos, já assisti dezenas de ataques terroristas,
letais, dolorosos, inexplicáveis, humanamente doentes, pavorosos. Da mesma
forma como já assisti dezenas de ataques militares que destroçaram cidades,
mesquitas, escolas, hospitais, mataram mulheres grávidas, idosos e crianças,
letais, dolorosos, inexplicáveis, humanamente doentes, pavorosos.
E
a cada ataque militar, a cada lamento de crianças dilaceradas ou de seus pais, com
angústia de fazer chorar, eu lia artigos luxuosos de intelectuais doentes,
tentando explicar o ataque, encontrar um jeitinho sem-vergonha de legitimar a
morte que se espalhava sob os estilhaços dos fuzis dos marines criminosos ou de
drones mortais.
Havia
um pântano intelectual aonde esses lobos das letras devoravam suas ovelhas
africanas, palestinas ou islâmicas. Eles se assumiam como intelectuais
conservadores, outros, de direita, opostos a um mundo que trouxesse algum
sobrenome que falasse de islamismo, de terceiro mundo, de nacionalismo, de
socialismo ou de movimentos de guerrilha (uma espécie de guerra permitida aos
mais fracos) ou de qualquer resistência dos povos oprimidos, colonizados,
escravizados, famintos e doentes.
Quem
lia aqueles artigos doentes, apodrecidos, dementes, se exasperava, mas, sabia
que era ‘normal’ aqueles textos de esgoto, pois vinham de gente que conseguia
encontrar argumentos até para o holocausto nazista ou para as ditaduras
militares e suas carnificinas. Arrancar Saddam Hussein de um buraco, como um
rato, e depois enforcá-lo, no YouTube, provocou glamour nas altas rodas
sociais, até naqueles que, no seu país, são contra a pena de morte.
Agora,
nós estamos mais incomodados, mais desconfiados, mais tristes. É que os artigos
que eu estou lendo pertencem a intelectuais que, até outro dia, viam na vida
humana o bem maior do universo. E a sua argumentação era forte porque suas
letras nasciam do ventre da esperança humana e de suas dores profundas. Eram
intelectuais de esquerda, protegiam nossa gente perdida e seviciada pelos
quatro cantos do planeta, com sua escrita poderosa, iluminada e humanista.
E
por que estão a escrever sobre o assassinato de jornalistas do Charlie Hebdo de
um jeito novo, perverso, como faziam seus adversários intelectuais, construindo
argumentos para explicar o crime? O que angustia é que são muitos e muito
respeitáveis. Apresentarei, aqui, apenas os mais perspicazes.
O
ex-padre Leonardo Boff escreve o artigo ‘Je ne suis pas Charlie: Eu não sou
Charlie’ (https://leonardoboff.wordpress.com/2015/01/10/eu-nao-sou-charlie-je-ne-suis-pas-charlie/), em
indisfarçável contraposição ao movimento ‘Je Suis Charlie: Eu sou Charlie’.
Leia
e constate, a base do artigo é encontrar uma explicação para o que aconteceu. A
sua profunda teologia, apesar de amorosa, sem querer, visita os cemitérios e
leva o leitor comum a duvidar de que a vida humana é suprema em qualquer
situação. Talvez, porque o nobre escriba tenha vivido muito tempo explicando a
morte de Abel, o afogamento de quase toda a raça humana no dilúvio ou as
terríveis pestes egípcias, que incluíram até a morte de uma criança inocente, o
filho do faraó, apesar de padres e pastores atuais sempre entenderem de outro
jeito.
O
artigo do ilustre Leonardo Boff ficou meio que com cheiro de incenso. Na
verdade, amigo doutor da lei, me desculpe a comparação. Mas, ficou meio esquisito,
como aquela tese vilã, de que a mulher que usa minissaia está pedindo para ser
estuprada. Eu fico pensando como o senhor vai abordar, a partir desse artigo, a
questão do aborto, porque há mulheres que matam seus fetos e usam argumentos
assemelhados. No prisma da ofensa, o que é mais grave? Uma charge que ofende Muhammad
ou um estupro? Os dois podem legitimar a morte?
Os
artigos brotam como lagartas velhas vestidas de anjos novos. José Antônio Lima,
escrevendo o editorial da prestigiada revista Carta Capital (http://www.cartacapital.com.br/internacional/charlie-hebdo-a-culpa-da-arabia-saudita-3209.html), vai logo proclamando: ‘Charlie Hebdo: a culpa (é)
da Arábia Saudita’, introduzindo o petróleo e a geopolítica nas causas dos
assassinatos, talvez, o assunto que já tenha mais produzido teses de doutorado
no planeta.
E
eu, um pobre leitor do norte do Brasil, pensava que esses intelectuais soubessem
que o petróleo já produziu mais mortes do que dois milhões de dilúvios
(levando-se em conta a população do tempo de Noé), cevou ditadores com base no
soldo dos países ricos e importadores de óleo cru (como EUA e Europa) e depois
os descartou e os exterminou como ratos, enforcando Saddam Hussein e executando
Muammar Gaddafi e alimentou o ódio que produz os terroristas de todo tipo e
suas vestes de dinamite.
Só
não acreditava que esses intelectuais, com a sua história e o seu conteúdo,
escreveriam tantas teses para explicar os assassinatos, ao tempo hábil de
depositar suas laudas nos caixões ainda abertos dos jornalistas do Charlie
Hebdo. Que compreenderiam que qualquer intelectual, qualquer homo erectus deveria
condenar com veemência (sem mas ou todavia) esse ataque terrorista e, com mais
rigor, olhar para o alvo central dos disparos letais: a liberdade de expressão,
mesmo que seja do tipo mais hostil.
A
fila é longa, conceituada e ilustre, mas, eu vou encerrar com aquele que
construiu o mais engenhoso dos argumentos, talvez, o que traz mais novidade
sobre o atentado, que ele chama de meta-terrorismo: Wilson Roberto Vieira
Ferreira, que escreveu, no Portal Fórum: ‘O atentado ao Charlie Hebdo foi um
filme mal produzido? (http://www.revistaforum.com.br/cinegnose/2015/01/09/o-atentado-ao-charlie-hebdo-foi-um-filme-mal-produzido/).
A
base do artigo é a conspiração, altamente padronizada e eficiente, aonde o
poder dos grandes capitalistas ocidentais e de seus governos organizam o
atentado, com o fim último, a grosso modo, de ressuscitar o desgastado François Hollande, oxigenar eleitoralmente a extrema-direita
de Marine Le-Pen e até abrir as portas, como ocorreu com o 11 de setembro em
relação ao Iraque e ao Afeganistão, para que os EUA possam bombardear e controlar
militarmente o Iêmen, aonde se situa o estreito de Bab el-Mandeb, um dos sete
pontos que os norte-americanos consideram gargalos para o transporte de
petróleo.
Sobrou
até para a imprensa brasileira que, segundo esse engenhoso argumento, estaria
utilizando o atentado ao Charlie Hebdo para desconstruir a tentativa de regulação
da mídia. Eu fico pensando (Deus me livre desses meus pensamentos), se esse
intelectual estivesse, naquela hora fatídica do atentado, escrevendo o seu
artigo na sede do Charlie Hebdo.
Como
se vê, o problema não está na argumentação, porque, se quiséssemos,
publicaríamos mais uma centena de artigos e argumentos não faltariam,
essencialmente, para a morte do humanismo que nos alimentou nesses anos. E ele
não foi ingênuo, foi radical, porque era a alma gêmea de nossas letras
revolucionárias, a fonte da juventude de nossas utopias, a espiritualidade que
protegia nossos versos indóceis e até, muitas vezes, próximos da letalidade.
Agora,
com a tentativa de explicar a morte, de transformar em gelo o sangue dos
jornalistas franceses (ásperos, irreverentes, teimosos), nós vamos ter
dificuldade de ser diferente, de continuar entendendo a engrenagem da morte imperialista,
mas, capazes de nunca abraçar, nem com as letras, a irracionalidade dessa gente
infame do EI, do Exército islâmico e de seus iguais.
O
que esses intelectuais disseram quando tentaram assassinar o Papa João Paulo
II? E, se um maldito atentado terrorista atingisse a casa de descanso de Fidel
Castro ou o palácio indígena de Evo Morales? Qual seria o argumento se,
lamentável e perversamente, um atentado terrorista atingisse um de seus
familiares? Apelação argumentativa? Acho que não, apenas uma indelével nódoa
boa, que grudou em mim, do tempo em que defender a vida era a marca do nosso
humanismo.
Contra
o terror não tem conversa, não tem tese de doutorado e nem poesia. Venha de
onde vier, tenha a causa que tiver, deve ser combatido com a energia
inconfundível das liberdades civis e da força do Estado de direito, seja de
esquerda, seja de direita, e levantar as multidões.
* Moisés Diniz é membro da
Academia Acreana de Letras e autor do livro O Santo de Deus.
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