domingo, 25 de dezembro de 2011

Jesus, humano 'até os ossos'


No Domingo de Natal publico um trecho de meu próximo livro, MADALENA, em homenagem ao jovem camponês judeu do Mediterrâneo, filho de carpinteiro, Jesus de Nazaré. Um texto pra ler com o coração.

Jesus, humano 'até os ossos'

Naqueles instantes primitivos Yeshua lembrava a silhueta mágica de Mariamne e aquela lembrança o incomodava e o assustava. Como pode o filho predileto de Deus submeter-se a pensamentos tão obscenos e assustadoramente humanos? Retornava ao trabalho e ao sol e, ao entardecer, passava pela aldeia para ‘ver se via’ Mariamne numa das janelas dos lugares profanos de Nazaré. A noite e suas lamparinas sombrias escondiam os rostos humanos e principalmente a beleza do olhar feminino. O filho predileto de Deus preferia o sol, para poder contemplar Mariamne em toda a sua plenitude e fugir da reflexão que chegava com as sombras da noite. Yeshua não compreendia o que acontecia com o seu corpo humano e com a sua alma divina.
Yeshua herdara de Maryam todos os atributos humanos e sentia todas as necessidades da carne, dormir, comer, descansar, beber, liberar excrementos, possuir uma mulher. Yeshua respirava e sentia os perfumes delicados que cobriam a pele de toda mulher. Suas mãos tinham sensibilidade para deslizar nas partes erógenas de uma fêmea, sentir seu hálito quente, ouvir seus gemidos e admirar as curvas de um corpo nu e inocente. Toda a sua herança divina não conseguia controlar os seus sentimentos e desejos humanos. Yeshua se tornara dependente do olhar de Mariamne.
Todavia, o filho predileto de Deus tinha o espírito ocupado pelas maldades humanas e não lhe sobrava tempo para amar, de longe, os olhos, o corpo, o cabelo e a alma de Mariamne. O Império Romano não lhe deixava em paz. Além de usurpar o suor camponês, com altas taxas sobre a vida e o trabalho, os invasores estavam também roubando a alma da Judéia. Os sacerdotes, que controlavam o Templo e a Torá, não se distinguiam de seus antigos opressores, de forma que a massa de fiéis não acreditava mais que, das portas das sinagogas, saísse o tão esperado Messias. Talvez o seu nascimento se desse nas montanhas ou numa pobre aldeia.
O que intrigava Yeshua era entender porque Deus o fecundara naquela terra de ninguém e naquela civilização. Por que não o enviara antes, quando a humanidade ainda não se dividira em castas, em credos, em raças e em civilizações? Yeshua poderia ter vindo à Terra antes que essa estivesse dominada por umas poucas dinastias e apegada a algumas tradições. A Judéia estava arrebentada na sua originalidade e nos seus agrários costumes, a prostituição dominava o corpo, a alma e as sinagogas. Os palácios apenas a decoravam, como matriz de uma civilização que cultuava o sangue da espada e da menstruação. Os monarcas viviam como vermes adornados de ouro e diamantes, com suas mulheres vadias e despidas de toda decência e de toda honra. Yeshua convivia com o lixo humano e sentia dificuldade de livrar-se de seus mais putrefatos odores. O que havia para salvar naquela terra que vendera Deus aos romanos?
E se Yeshua não conseguisse resistir aos encantos de Mariamne? Com certeza, em algum lugar do futuro, um teólogo obtuso ou um fiel confuso lhe ergueria a mais brutal condenação. Como um Deus humano pode possuir uma mulher? Não compreenderiam o profundo envolvimento humano que acompanha aqueles que vivem próximos das dores e da alma da humanidade. Yeshua ficou próximo e se envolveu, sentiu o odor de carne humana e todos os seus incensos, provou do vinho e abriu sua alma para as aventuras da mortalidade, apalpou a pele áspera das montanhas e macia das mulheres judias e palestinas, suportou o calor do sol e o frio das madrugadas, a sede e a fome, as doenças da época, os desejos de adolescente e os sonhos de adulto.
Yeshua não participou de uma aventura na Terra, ele nasceu aqui e enfrentou todas as vicissitudes humanas. Sua mãe sentiu medo na fuga para o Egito, viu soldados romanos procurando-a como se caça um animal feroz, apesar de Maryam ser frágil e delicada como o orvalho e a brisa da manhã. Maryam sangrou no parto e Yeshua nasceu coberto de sangue como toda criança, um instrumento rústico cortante separou o seu umbigo do corpo e uma palmada carinhosa arrancou-lhe o primeiro soluço de choro. Aquele menino, outrora constituído de prótons, neutros e elétrons eternos, procurou os mamilos de Maryam para saciar a fome e a sede. Água da terra e perfumes naturais o banharam e Yeshua foi envolvido em vestimentas infantis, confeccionadas do algodão daquela terra sem água. Sandálias de couro cuidaram de proteger os seus pés juvenis.
O filho predileto de Deus respirava o mesmo ar que circulava nas montanhas e nas aldeias dos seus compatriotas. A comida que Yeshua consumia se decompunha no estômago e ele precisava se desfazer delas, urinar, limpar-se, se vestir. Yeshua era humano como todo e qualquer homem da Terra e seus desejos seguiam a lógica da mortalidade. Por isso, se Yeshua viesse a possuir o corpo frágil de Mariamne, nós não poderíamos jamais condená-lo, pois a sua condenação significava colocar na fogueira a própria essência da existência humana. Yeshua era homem, com todas as necessidades que acompanham a nossa espécie desde os primórdios e a sua paixão inconsolável por Mariamne era apenas a conseqüência de sua decisão de viver entre nós.
Foi por isso que Yeshua ressuscitou, porque ele era mortal, dotado de todas as habilidades humanas e perseguido, como um pássaro ferido, por todas as serpentes que infernizam os homens, especialmente aqueles que sobrevivem do trabalho de suas próprias mãos e, como herança do Éden perdido, comem e bebem do suor do próprio rosto. Yeshua calejava as mãos na carpintaria de Yoseph, seu pai, e suava a túnica para confeccionar uma cama, uma mesa, um altar. Do contrário, Yeshua teria apenas adormecido na cruz, não teria sentido tanta dor, nem derramado lágrimas e acordaria de volta para a eternidade que deixara na imensidão do universo. Então a humanidade não teria salvação e a nossa espécie não passaria de uma experiência cósmica de um Deus com tempo eterno ao seu dispor.
Yeshua preferiu nascer aqui, viver entre nós, respirar, dormir, comer e, quem sabe, fazer amor com Mariamne. Haveria algo mais natural? Yeshua ouvira falar daquela mulher que inquietava todos os homens das aldeias próximas, os sacerdotes do Templo, os soldados e os mercadores e aquela notícia cotidiana sobre quem dormira com Mariamne o incomodava como um leito de espinhos. Melhor dormir sobre pregos do que suportar aqueles boatos diários como se fosse um ossuário de antepassados queridos sobre a mesa da sala. Yeshua sofria e a sua dor ganhava intensidade a partir da constatação de que sua origem divina o impedia de possuir aquela mulher.
O filho predileto de Deus podia dormir, urinar, comer e beber, até rezar nas sinagogas, enfim, ser humano, mas não podia fazer amor com Mariamne. Trinta anos na mesma terra, com os seus parentes e os mesmos amigos, uma vida dedicada às suas aldeias e à cura de suas doenças, do corpo e da alma, combatendo atos imorais e indecências, ensinando sobre a fraternidade e a paz entre os homens da Terra, mas Yeshua não podia fazer amor com aquela mulher de corpo iluminado e alma livre. Será que Yeshua não estava sofrendo uma maldição e precisasse de um discípulo para excomungar os demônios e acalmar o seu espírito?
Foi assim que Yeshua chamou Tomé e lhe pediu para guardar suas dúvidas até que o último demônio fosse expulso da mais remota aldeia. Então Tomé exorcizou aquele demônio que perseguia a alma de Yeshua e de todos os homens que não compreendem os profundos laços humanos que prendiam à Terra o filho predileto de Deus. Naquele dia memorável Yeshua se livrou do pior de todos os demônios e compreendeu que não poderia fugir eternamente da vontade de fazer as coisas que a humanidade lhe prometeu. Uma mulher inestimável nos seus encantos e na sua ternura o aguardava como um peregrino sonha com água límpida no extremo de todo deserto. Yeshua estava próximo a se tornar verdadeiramente humano.
E ainda havia o conhecimento do seu próprio martírio. Yeshua sabia que estava próximo o instante em que seria crucificado e, a partir dali, teria apenas três dias entre nós, para então regressar ao seu refúgio infinito. Aquilo o maltratava como chicote de fogo. Aqueles soldados bêbados, aqueles mercadores suarentos e até os ignóbeis sacerdotes do Templo, todos possuíam o corpo de Mariamne como se fosse um cálice de vinho, um pedaço de pão com azeite, um pernil de ovelha, uma sombra de tamareira, uma gruta. Por que ele não podia ser homem como todos os homens e sentir aquele fogo consumir suas veias mais secretas e apagar-se junto ao último gemido?
Yeshua tinha o corpo marcado pelas dores de uma família sem posses, pagando taxas abusivas aos romanos e ao Templo, ouvira falar das orgias que se davam nos palácios de Jerusalém, as injustiças cometidas contra os seus compatriotas e guardava o conhecimento do martírio. Começava, naqueles instantes, a sentir um profundo ressentimento da espécie humana. Por que aquela civilização não permitia que ele amasse uma mulher de cabelos de âmbar, pele de chumbo em brasa e olhar profundo como a mais remota cavidade do mar Morto e suspiros noturnos como um uivo de um lobo faminto? Que justiça humana era aquela que o queria apenas como cordeiro imolado, faminto na cruz, esfolado pelas lanças e pelos chicotes e consumido pelos lobos selvagens, como manda a tradição sobre os homens sem posses na tradição judaica?
E não adiantava o consolo de que seria retirado da cruz, salvo de ter as pernas quebradas, como manda a tradição, e dos lobos, como um homem nobre e de posses e sepultado na tumba da família Arimatéia. Yeshua queria abraçar Mariamne, sentir todo o seu corpo e fazer dela uma mulher de um homem só. Que Deus era Ele, pensava, que ousa salvar o mundo e não consegue livrar do pecado e da indecência uma única mulher? O amor de Yeshua por aquela judia de Betânia era maior do que o seu desejo carnal. Toda a sua angústia residia na adição da libido humano com a ternura divina de curar as feridas que perseguiam a mortalidade na Terra. Yeshua amaria Mariamne de um jeito tão profundo que as águas mais frias do oceano salgado da Galiléia se tornariam doces e temperadas.
Dizem os escritos mais antigos e mais respeitáveis do médio Oriente que Herodes fora informado do amor de Yeshua pela prostituta mais cobiçada da Judéia. O monarca decretou que a lei judaica contra a prostituição devia ser vestida de todo rigor. Os sacerdotes do Templo agiram com religiosa fúria e centenas de mulheres prostituídas foram apedrejadas nas longínquas aldeias. Mariamne escapou das pedras até o instante em que não aceitou mais deitar-se com os soldados de Roma, os seus mercadores e os seus sacerdotes do Templo. Talvez as pedras voltassem, com a sua fúria, a sua dor e o seu sangue, quando a bela judia de Betânia guardasse seus encantos humanos para os olhos e as mãos exclusivas do filho predileto de Deus.
Nenhum daqueles sacerdotes, da simples a mais alta linhagem, fora capaz de condenar a prostituição da filha de Herodíades, muito menos levá-la ao pátio de uma sinagoga e apedrejá-la até a morte, como faziam com as prostitutas das aldeias sem linhagem nobre e sem posses. Por isso que os demônios, em mais de um bilhão de abismos e câmaras malditas espalhadas em todos os infernos, aguardavam ansiosos pela chegada daqueles sacerdotes da Palestina e da Judéia. Como vermes anelídeos e amorfos, aqueles sacerdotes do Templo estavam a consumir a última esperança humana, a melhor das utopias e amedrontavam o homem que precisava vencer o medo e suportar as dores da mortalidade. O mais violento, eterno e suplicante fogo consumiria aquela casta infame nas profundezas do último dos infernos. O pior de todos os suplícios imaginados por Lúcifer seria destinado àquela casta de vestes brancas, que utilizara a mais bela de todas as utopias para acumular posses e corromper as suas aldeias.
Os sacerdotes do Templo não escapariam da dor infinita que se organiza nas profundezas do abismo para as almas que vendem a honra, amedrontam e infernizam a vida dos pobres, sejam eles da Terra do Sol ou da Judéia. Como Yeshua poderia perdoá-los, se eles haviam vendido os seus compatriotas, compactuado com a dor e a sevícia e, para encerrar a tragédia, consumiam, como lagartas, a carne inocente de Mariamne? Somente o silêncio das estrelas, a imensidão dos quasares, para acalmar a fúria de Yeshua e lhe devolver o sentimento mais nobre que nos ensinara, o perdão que faz o homem ficar próximo dos anjos. O filho predileto de Deus nunca compreendera porque Ele devia afastar-se de Mariamne, enquanto aqueles sacerdotes castos e celibatários a possuíam, como uma montanha de larvas apaga uma pálida chuva.

E Yeshua perdoou os homens, porque Ele sentiu as nossas dores, silenciosas e indecentes.


 

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