quinta-feira, 17 de novembro de 2011

SERPENTE DE FOGO


                              Eram todos de uma mesma terra. Uns traziam na alma a insensibilidade da soberba e da opulência e sobre elas construíam as suas mesquinharias. A morte que vicejava na periferia passava ao largo. A eles interessava, apenas, a acumulação doentia do seu patrimônio. Quantas vezes, aquela gente esnobe ria solto dos filhos da fome, com um tijolo na cabeça, a reverenciar o padroeiro. Eles, também, com o nariz empinado, caminhavam nas procissões. Espaço cativo, professavam a sua mercadora fé bem ao lado do vigário da paróquia. E todos se diziam filhos de Deus. Até esses, que haviam confiscado o último vintém dos seus esfomeados peões.
                        Outros, espremidos pela ausência constante do pão e alquebrados sob as doenças dos alagados, clamavam a Deus o fim de todas as dores. Naquela via-sacra diária não entendiam a bondade de Deus, era como se fossem filhos bastardos do céu. Enquanto outros, como filhos prediletos, bem vestidos e asseados, consumiam, feito micróbio, o supérfluo que alimentaria duas filas de casebres.
                        Os párias de um novo tempo, conquanto, qual filho enjeitado, alumiavam as suas choupanas com a luz do combustol e as suas vidas marcadas com a luminosidade incandescente da fé. Nas mansões imponentes havia, transbordando, mais luz e alegria. A casinha do cachorro consumia mais combustível que um hectare de moradias indignas. Desajeitados, dedilhavam os seus rosários, único alfabeto daquela gente usurpada.
                        Havia, ainda, aqueles que não se submetiam à tamanha indecência. Professavam a sua fé na consciência humana. Pelejavam, como titãs, na construção de canaviais de esperança, amanhados no suor dos filhos da morte. Não creditavam aos céus a sazonalidade dos males da terra. Sua luta eterna em organizar os deserdados entrava em choque com os donos do ouro. Estes, encastelados na sua riqueza doente, utilizavam a força dos céus para reprimir os profetas do povo, filhos rebeldes de Epicuro.

                        O avião monomotor se assemelha a um pássaro ferido. A tempestade vespertina dos estertores de março torna o céu uma pororoca de gases enraivecidos. Dr. Renato agarrado, feito aranha no esgoto da enxurrada, à poltrona do morcego de aço tinha um semblante de múmia. Ao seu redor, gritos de desespero e preces de última hora. Não havia dúvidas, o velho avião não agüentaria da tempestade os seus coices ionizados. Naquele momento de angústia extrema Deus multiplica a sua força. Ali, como folhas secas, ninguém tem às mãos o seu destino. De nada adianta o dinheiro, o cargo público ou a posição social.
                        Na poltrona de trás um alquebrado diarista, seu Joaquim, volta de uma operação cirúrgica na capital, paga por um político de Lipuna. Talvez não seja mais crente que os outros, conquanto guarda no coração, para aqueles momentos, uma dúzia e meia de santos. Evoca o Pai e Maria Santíssima, São Francisco e São Sebastião, São Gerônimo e São José. Se não fosse Nossa Senhora ficava uma prece machista. Mais a frente, feito um deus tornado homem, o Dr. Raul Boaventura. Suas milhares de reses e todo o seu patrimônio não o tornam superior ao seu peão da poltrona de trás. Era de provocar compaixão aquele homem, dono de meia cidade, chorando feito menino pelos seios da mãe.
                        Aumentava o desespero daquela gente, apesar de estarem agarrados a Deus. Se o padre João estivesse ali ficaria encabulado. Tinha lhes garantido, sustentado na Palavra de Deus, que o Paraíso era perfeito e sem dores. E que após a morte acabavam todos os martírios desta terra inglória. O Dr. Raul Boaventura não teria mais tanta dor de cabeça com os estratosféricos juros bancários e o seu Joaquim, aliviado, se esqueceria dos dias doentes desbastando os canaviais.
                        O Dr. Renato, finalmente, encontraria aquele que provocara tanta dispersão nas suas trincheiras. Quantas vezes o Dr. Renato, ao tentar mobilizar as famintas multidões, ouvira de um resignado banguela:
                        - A gente precisa sofrer, seu Renato, para ganhar o paraíso!
                        Inconfessáveis as interrogações! Uma meia dúzia de homens, com os pés distantes do chão, passavam à limpo as suas convicções.

Não cure a minha dor

                        Seu Joaquim, velho peão de fazenda, não recebera da vida a oportunidade do discernimento. Não ousara mastigar a desobediência espremida entre duas mãos generosas da primeira mulher. Seu espírito, desativado, não conhecia a reflexão, abortada entre umas tantas cabeças de boi. O desespero que tomava conta da sua alma era surdo e sem horizontes. Pensava, aos prantos, em dona Zefinha e nos doze apóstolos, seus filhos barrigudos e de mãos maceradas. A eles não deixaria riquezas. Garantira-lhes, com esforço carbônico, a honradez e a honestidade. E se aquele avião caísse seu Joaquim levaria com ele apenas um pecado: o de não ter controlado as doses de álcool nos prostíbulos da periferia.
                        - Também, meu Deus - se desculpava, contrito - foi tudo o que o Senhor me deu de alegria!
                        Nem ao seu filho, aquele velho peão teria coragem de fazer aquelas confissões. Todavia a Deus as confessava. Monologava, desenvolto e desesperado, com aquele que, nos dias normais, se benzia só em ouvir o santo nome. O que se passava na alma daquele genuíno representante de todos os párias? Seu Joaquim a Deus implorava:
                        - Meu Pai, o Senhor que é poderoso, não deixe que roubem os calos de minhas mãos. Quero sentir eles pela manhã sob o sol intolerável do canavial. E à noite, meu Deus, afagar com todo o meu áspero amor os seios caídos de minha Zefinha.
                        Aquele velho peão de fazenda, no seu monólogo, era como se fosse um parceiro de Deus:
                        - Sei, meu Pai, que o paraíso é tão belo quanto o mais belo dos horizontes, porém me deixe, mais uns dias, padecer de fome no meu tapiri. Assim, meu Deus, ganharei no céu um lugar bem melhor. No paraíso, Senhor, vou sentir falta da palha da cana cortando a minha carne. Quero, meu Pai, nas tardes de sábado, ter à minha porta todos os meus credores.
                        O seu aviltante monólogo, a escandalizar todos os crentes, era de cortar o coração daqueles que estavam com os pés firmes no barro da periferia ou no asfalto do centro da cidade. Aos céus, seu Joaquim, novamente, clamava:
                        - Deus poderoso, não me liberte agora de minha prisão. Quero ficar mais um pouco entre as grades da carne, sentindo a sobrecarga de todas as dores e o hálito fétido da minha Zefinha. Como eu a amo, meu Pai! Seu jeito troncho de dizer que me ama, o abraço inibido dos meus filhos suados e a falta de pão na minha tapera. Com eles me acostumei.
                        E, novamente, seu Joaquim, com a morte precoce aos pés, desvelava o que não ousara dizer na igreja:
                        - O paraíso, sonho das minhas procissões e todas as minhas rezas, pode aguardar mais um pouco. Até porque, meu Pai, quantas promessas eu fiz sem que os céus dessem crédito à minha voz. Fazia promessa por uma vida melhor e rezava ao padroeiro chorando o fim daquela vida malvada. Agora, meu Deus, prestes a me despedir de todas as dores em troca da vida eterna, rogo ao Senhor que não roube os sofrimentos da minha carne.
                        E como Deus nada falou, seu Joaquim esticou a sua oração e os seus pedidos profanos:
                        - Deus poderoso, sinto muito, mas não quero, agora, as delícias do paraíso que o padre mostrou. Lá, eu sei, não sofrerei a humilhação da falta do alimento e a dor das doenças que castigam os alagados. Minha vida, meu Pai, é um amontoado de sofrimento e privação. Sei que teus divinos neurônios não entenderão, mas eu prefiro a vida que levo no meu barraco, no meu canavial. Não quero a morte que traz o paraíso! Quero viver! Prefiro, meu Deus, o sofrimento da vida, as dores da carne! Desculpa, meu Pai, não quero tão cedo o teu paraíso! Prefiro a tristeza da vida, da carne à felicidade do teu paraíso. Insisto, me ouve, não quero morrer!

Um paraíso de cada vez
 
                        À frente, ainda irritado por dividir o mesmo transporte com o seu peão malcheiroso, o Dr. Raul Boaventura mais se assemelhava a um imperador destronado. Com o desespero entumecido, o milionário estava prestes a tornar-se um blasfemo, ia arrazoando as suas interrogações:
                        - Quem cuidaria de sua bela e jovem mulher?
                        Sua pele alva como a manhã de inverno e seu corpo celular, de fazer pulsar a mais celibata veia, seriam entregues aos olhos profanos daqueles mendigos que, de olhos caídos, cobiçavam a sua riqueza e sua mulher. A sua cabeça, ainda confusa pelo tilintar do dinheiro, não aceitava tanta humilhação. Disso não se esquecera:
                        - No Paraíso, dissera o padre, todos serão iguais!
                        Aumentava a sua consternação. Com os olhos vermelhos, o cérebro confuso e as mãos trêmulas, questionava:
                        - Que justiça divina era essa, blasfemava, que guarda no mesmo aprisco o peão banguela, de hálito fétido e o dono de tantos hectares de boi?
                        Novamente o dono de Lipuna, insensível, resmungava:
                        - De que adiantou tanto trabalho, as generosas oferendas ao padroeiro e a reforma da igreja?
                        Não tinha fim a sua aflição e o seu descontentamento:
                        - Meu Deus! Eu quero ir para o céu, todavia, deixa-me, mais um pouco, cuidando dos meus bois.
                        Aquele homem poderoso, órfão de um talão de cheques e das ordens humilhantes às centenas de empregados, agarrava-se àquele que, por tantas vezes, referendara, pela boca do padre, as suas maldades e a sua insaciável exploração. À Deus, outrora instrumento, clamava:
                        - Meu Pai, tu que nunca disputaste comigo o poder em Lipuna, deixa-me, mais um pouco, como senhor absoluto daqueles famintos. Logo agora, meu Deus, que conquistei meu qüinquagésimo milhão! Com eles conquisto todos os sonhos, menos, neste instante perverso, o de não atrasar a chegada do paraíso. Deixa-me, pelo amor dos homens, continuar o desfrute dos meus milhões e da minha Maria Laura.
                        Como um sanguessuga, agarrado à pele gorda e suarenta do boi, exclamava o empresário:
                        - Amanhã, Senhor, farei o pagamento dos meus diaristas. Tu não imaginas, Senhor, o prazer que me dá ver tanta gente cabisbaixa, em fila, sob os meus pés. Não exijo nada reajustado de ti, quero, apenas, que todas as minhas contribuições à tua igreja sejam trocadas pela minha volta à terra. Lipuna é o meu reino e o meu paraíso o construí dentro das cercas das minhas fazendas.
                        Se Deus calou-se frente a um peão modorrento, por que contestaria um homem de muitos milhões? O empresário não se calou:
                        - Escute bem, meu Senhor, eu não aceito um paraíso que não faça distinção da cor da pele, da raça e da escala social. Não vou me misturar àqueles banguelas, de dentes apodrecidos, hálito fétido e odor de gambá. Quero um paraíso só para mim e os meus amigos! Não vou aceitar dividir meus aposentos com quem não tem a minha classe e a minha cor!

Aonde me agarrarei?

                        Naquela enseada revolta de gente aos trapos, o Dr. Renato talvez fosse o dono da maior aflição. Desde que partira há treze anos atrás voltava, somente agora, à terra natal, Lipuna. Por todo esse período, enfrentara muitas pelejas. De garoto pobre de internato, fugindo de um casamento precoce e compulsório, a doutor em antropologia, havia reconstruído os seus princípios, rebatizando as suas convicções. Ancorado na vida insuportável da periferia e nos gigantes do materialismo - se tornara  um homem do povo - professando a convicção de Prometeu. Trazia na carne e nos seus versos a consistência de um marxista.
                        Nesses treze anos, o seu Deus fora se distanciando, carregado nas asas medievais de uma hipócrita religião. Respeitava a religiosidade do povo, não aceitando os mercenários da fé, talvez, por isso, sentisse, agora, a orfandade. Aquela poltrona, onde se agarrara, era fria e sem monólogos. À quem recorreria? Aprendera a não combater moinhos de vento. Conquanto, ali estavam, a causticar as suas certezas. Como um poderoso ópio, carbonizava a sua resistência. Agora, entendia os seus manuais filosóficos. Neles aprendera de onde brotavam todas as religiões mercadoras. Sentia-se, nesse instante, um deserdado, um pária famélico de coisas inexplicáveis que anestesiassem a sua agonia. Ela, a curadora de todos os desesperos, se alojava, feito uma serpente de fogo, nas suas convicções adulteradas.
                        Dr. Renato, arrebentado e sem ninguém mais forte para clamar auxílio, estava reduzido ao tamanho das suas convicções. Ali, seus arraigados princípios estavam como palha ao vento e pior, acabava, naquela poltrona, o último ato da sua tragédia. Aos céus não confiara o seu destino. Seus dois vizinhos de poltrona, cada um,  haviam, pelo menos, desfrutado os seus infernos e os seus paraísos. Dr. Raul Boaventura, senhor de toda Lipuna, já desfrutara, sobre o fruto do trabalho alheio, um naco expressivo do paraíso. E, ainda assim, comprara do padroeiro o restante do céu para quando despertasse do cemitério. Seu Joaquim, aprisionado nas dores do canavial e no sofrimento torpe da periferia, se tornara inquilino de um inferno compulsório. O paraíso, para ele, seria, assim, uma experiência nova.
                        - E o Dr. Renato, na sua castidade ideológica, onde depositaria os seus últimos desejos? Perguntaria São Pedro, balançando um molho de chaves rôtas.
                        Compreendia, agora, porque a fé mercadora se alojava com mais desenvoltura nas feridas sem pão e nos esgotos da periferia. Sentia na própria carne, invadindo sua alma, uma força invisível, palpável, anestesiando os seus desesperos. Reaprendia, sob a tempestade implacável e a morte aos pés, que fora um equívoco combater a sanha indecifrável da igreja mercadora. Morreria insatisfeito! Antes de qualquer coisa era necessário curar as feridas, onde pousavam as mutucas invisíveis da fé mercadora, garantir o pão farto aos desabrigados e construir alfabetos em cada ponta de rua. Assim, os párias, por si só, se desvencilhariam da serpente de fogo. Isso aprendia naquele instante de guerra! Até ele, no seu desespero sem tábua, se tornara filho adotivo e de última hora. A curadora de todas as almas, irreverente, confiscara as suas convicções.
                        Uma nuvem fria, como o abraço de uma serpente ou um grotesco riso de escárnio, abraça o frágil avião. De chofre, uma claridade imensurável acorda os moribundos e susta aquela psicose de confessar,  na quase surdez da morte, as suas desfiguradas certezas. Através dos vidros do avião, pálidos passageiros contemplam, num orgasmo cósmico, a porta eterna de todos os seus sonhos. Está aos trapos a sua auto-estima. Envergonhados, não ousam se olhar! Como se adivinhassem o que cada um vomitara naquela aflição. Uma mancha negra, distante, a destoar aquele contato escatológico com o paraíso. Sobre ela desliza o soberbo avião. Como se fosse fosse possível perceber, um sorriso amarelo nas presas sagradas da serpente de fogo.            
                        Graças a Deus! Sob os vidros embaçados do avião surge o paraíso. Um anjo, às mãos duas tochas de fogo e às costas: Força Aérea Nacional, orienta o piloto contrariado. Um velho de cabelos brancos, com um molho de chaves nas mãos, recebe os passageiros. Uma potente e esnobe Mercedez leva p'ro aprisco o Dr. Raul Boaventura, de olhos vermelhos. À pé, sem ser notado, seu Joaquim segue p'ra periferia, nas costas, um saco de pano morto, mais murcho que as suas interrogações. Dr. Renato desce por último daquela nave maldita que colocou em xeque as suas convicções...

Nenhum comentário: