quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O FILHO DE EUCLIDES

 
Como se jorrasse sangue nesses rios

"Para saber o que é a Amazônia é preciso deixar os olhos e o coração soltos sobre os rios, as matas e os povos que escolheram a floresta como o seu lugar".
                                                Euclides da Cunha

                        Euclides da Cunha navegou nos rios do Acre, sentiu o seu calor que oprime e cansa o corpo, o frio letal das madrugadas, bebeu de suas águas, alimentou-se de raízes amazônicas, animais, peixes, talvez tenha amado uma de nossas mulheres, sentiu saudades. E o seu filho Sólon da Cunha aqui viveu, administrou justiça e aqui morreu, pelas mãos de um par de malfeitores. O filho de Euclides morreu numa emboscada, nas matas do rio Jurupari, Seringal Mira Flores, em Feijó, cidade acreana do Brasil, enviado numa diligência policial de Tarauacá, outra cidade do Acre, que faz dessa terra uma amante de Euclides.
                        De todos os livros que leste da vasta e magnífica literatura brasileira, Os Sertões, de Euclides da Cunha, te impressionam mais, como se o seu relato fosse uma marca de fogo e teu coração fosse uma pele de sal. Sentes que até hoje uma indiscreta salmoura sangra de teus afagos literários. É que o relato da morte dos nordestinos na Guerra de Canudos se mistura ao soluço das águas dos igarapés que molham o corpo de cada descendente que veio esconder-se nas matas da imensidão amazônica, mais precisamente nos seringais do Acre.
                        Quando teu pai relatava as aventuras de teus antepassados nordestinos, suas bravuras, seus desencantos, suas alegrias, suas dores e seus amores, tua curiosidade ficava aguçada sobre a sangrenta biografia do homem que desnudara a alma dos nordestinos de Canudos. Uma profunda simpatia dominava tua lógica em relação àquele engenheiro que soubera, de forma magistral e sensível, dissecar a alma do homem nordestino.
                        Na verdade, tu estavas à procura de notícias sobre o teu próprio passado. Os Sertões folheava a tua própria história, no relato perverso sobre a resistência dos nordestinos de Antônio Conselheiro. Naquele livro dormia a tua rebeldia. E também os teus medos, a tua indolência, a tua bravura, a tua paciência, a calma, a raiva, a fé, a graça, a fúria. O teu ego nordestino se escondia em cada letra de Os Sertões.
                        Euclides da Cunha encontrara a alma dos nordestinos e dela fizera um livro, talvez o maior de todos os livros de nossa resistência ao poder que escarnece e amedronta. Por isso a tua afeição ao escritor que soubera fazer das letras um canto de denúncia à morte dos nordestinos. E maior ficou a tua admiração e mais robusta a tua curiosidade, quando descobriste que Euclides da Cunha vasculhara os rios acreanos e se erguera para escrever uma nova denúncia: o exílio dos nordestinos na densa floresta amazônica.
                        Dessa vez, como um algoz que se regenera, a república não precisava enviar soldados, fuzis, nem pólvora e nem chumbo. A malária cuidaria de dizimar aqueles que escapassem do preço abusivo das mercadorias que chegavam sobre lombos de burro e o banzo nordestino terminaria de exterminar aqueles que resistissem às feras da mata virgem e ao frio letal das madrugadas. Os casebres que se ergueram em torno das promessas de Antônio Conselheiro eram mais sólidos, mais coletivos e mais poderosos.
                        Aqui, como vigias de si mesmos, os tapiris se perdiam na imensidão e na solidão das matas amazônicas. Amparados por uns poucos troncos de madeira inferior, os casebres dos herdeiros de Canudos não passavam de prisões debaixo do sol e da chuva. Aqueles nordestinos não compreendiam porque o ar gelado da madrugada era mais livre que as suas vontades, que nunca alcançavam a porta de mogno do barracão. Os nordestinos que estavam enterrados em Canudos souberam armar-se de fé, de espingardas e de facões. Aqui a espingarda servia apenas para afugentar a onça, matar o próprio almoço e abater a própria janta.
                        Dessa valentia falaria Euclides da Cunha, o escritor dos nordestinos acamados, perdidos, arrebentados. O escriba das dores da terra árida de Canudos e, agora, da terra das águas do Purus. Falaria de como homens franzinos enfrentavam a noite perversa, com seus gemidos, seu ar gélido, suas silhuetas intocáveis, seu silêncio de morte e sua demora em amanhecer. A terra de que se ocuparia não seria aquela que mais se assemelhava a um paraíso de sal, onde nem os vermes sobreviviam.
                        A terra daqui era aguada como uma cuia de tacacá, ardente como o agrião, quente e cheia de sal. Euclides da Cunha escrevera centenas de páginas sobre a terra do sertão, com escassos animais e pássaros, peixes, lagartos e insetos, pouca água e vegetação. Sobre a terra das águas, com a sua infinita abundância, suas vozes e sinais, o escritor dos nordestinos aflitos utilizaria as próprias folhas da mata insatisfeita para produzir o seu best-seller verde, a sua obra incompleta.
                        Por fim, escreveria Euclides sobre a guerra do homem amazônico, que já fora nordestino e aqui encontrara uma nova nação, com os seus signos, a sua maledicência, o seu rancor e a sua afeição. Talvez tenha sido essa terrível separação, entre a alma nordestina e a amazônica, que fez Euclides da Cunha perder a paciência com o poder, amar sem limites e denunciar a mais sórdida, silenciosa e nefasta conspiração, a guerra do lugar hostil contra nordestinos exilados, a guerra da sobrevivência.
                        Acordar com a madrugada, pescar uns peixes miúdos, comê-los com sal e banha na panela, ao alvorecer, agarrar-se aos instrumentos de trabalho, a enxada, a faca de seringa, o terçado, enfezar-se com os mutucas, o pium, a ruçara, os cipós-de-fogo, todo tipo de inseto, até inseto que mata, pico-de-jaca, cascavel, olhar para o sol que aquece o sangue, queima e rasga a pele, proferir uma ofensa, arrepender-se, retornar ao casebre, na mesma roupa adentrar a mata, uma espingarda e uma fé manca, uma imbiara, a janta, dos filhos banguelas, da mulher destruída, na pele, na alma e na esperança, retornar cabisbaixo, um macaco-prego, uma nambu, meninos alegres, para ver quem ficará com os ossos das mãos e dos pés, fazer brinquedos com ossos, na ausência compulsória do natal urbano, descer ao porto, tomar um banho com pouco sabão, às vezes andiroba, voltar ao casebre, fumar um porronca, contar um causo da mata, que viveu ou ouviu, animar a família, dizer que naquele ano vai dar para tirar saldo do trabalho bruto, comprar um fardo de chita, um sapato, um relógio, uma lanterna, mais sal e açúcar, combustol, lavar a boca no jirau, espirrar, tossir, mijar no trapiche, olhar no terreiro o bacurin, as galinhas, o pato, dar uns farelos ao pequeno guariba que grita na ponta da paxiúba, armar a rede, sacudir, para espantar as aranhas e a maldição, deitar o corpo quebrado, a alma partida, os pés maltratados, o coração amedrontado, rezar um pedaço do terço, que já é um pedaço da oração, benzer-se, agradecer a Deus o dia, a comida, o roçado, o bruguelo que nasceu, falar algo à mulher que até hoje ninguém entendeu, descer a mão para as partes secretas, vestidas, cobertas, gemer baixo, esfregar-se, prender a respiração, ejacular, envergonhar-se do corpo desnudo, limpar-se, dormir como um poste, acordar, espreguiçar-se, vestir-se, lavar a boca, cuspir, recomeçar.
                        Euclides da Cunha se tornara um pedaço indissociável do Acre, de suas mágicas e densas florestas, seus lagos e seus encantos, suas dores, suas festas e suas agonias. Mas, o pior estava por vir. Descobrir que a nossa terra se tornara a amante de Euclides, seu carrasco e sua dor. O escritor dos nordestinos viera para vestir o Acre de linhas nobres, limites territoriais com o Peru, adorná-lo com o uniforme da nação brasileira e abraçá-lo com os afagos da república. E, desgraçadamente, ao voltar, encontrara a sua mulher despida nos braços de um cadete.
                        O Acre estava no sangue de Euclides, nas suas roupas tinha o seu cheiro e na sua pele tinha a saudade de seus amores. O autor celebrado de Os Sertões não imaginava que o Acre reteria até o seu sangue, inocente, juvenil, através do corpo indefeso de seu filho Sólon da Cunha. Aqui, como um hemocentro secreto, nas cabeceiras de um rio, o sangue de Euclides foi envolto numa bolsa de terra nua, arbustos e cipoais. Até hoje alimenta os pássaros cantores, os guaxinins, os vermes da terra, as plantas medicinais.
                        Escrevo aqui a vida do filho de Euclides na Amazônia do Acre, Sólon da Cunha. Nenhuma proteção familiar e nenhum amigo, como se uma avalanche de sal cobrisse o seu corpo e as suas indisfarçáveis memórias. Sólon da Cunha, nesse relato, será verdade e encanto. Em muitas linhas sentiremos o odor entranhado da pólvora, o frio insuportável das madrugadas, a solidariedade dos novos amigos e a paixão pela noiva desconhecida. Em outras, como se fossem mãos de cadáveres a escrever, apensaremos o horizonte intocável da imaginação e a magia das secretas vontades humanas. Um livro que narra fatos reais e encantos, uma luta indiscreta entre a vida e a ficção.
                        Vai ter hora que a Caipora vai ser mais real do que a sua noiva de Tarauacá, que até hoje ninguém encontrou, e os urros pavorosos do Mapinguari vão ser mais ouvidos do que sentidos os odores putrefatos e sacros do seu túmulo e do seu nobre cadáver.

Um comentário:

Antonio Franciney disse...

Caro Moisés,
Recentemente andei pesquisando sobre Sólon da Cunha. Sou apaixonado pelos OS SERTOES, já reli sem contas À MARGEM DA HISTÓRIA e qualquer assunto relacionado à obra euclidiana. Estava a pesquisar sobre a tumultuada vida de Euclides quando me deparei com a tragédia do Jurupari.
Realmente os Cunha foram assinalados pela tragédia, mesmo após a morte de Euclides (em 1916, mesmo ano da morte de Sólon)no duelo com o amante da mulher, o filho tentou vingar-lhe e foi igualmente morto pelo mesmo Dilermando. O próprio Sólon na época foi acusado de alcovitar a traição do pai estando junto ao assassino(segundo relatos) no momento em que Euclides dá o flagrante. Antes de morrer Euclides o perdoa, assim como a esposa. Era portanto, amigo do assassino do próprio pai e pelo que consta assim continuou, até que (talvez como autopunição) veio ter ao Acre.
Anos depois de casar oficialmente com Ana, Dilermando a abandona.
Impossível conhecer a vida de Euclides e seus descendentes e não revoltar-se (sensibilizar-se é melhor) com as tragédias (cavadas e vivenciadas) por Ana de Assis.
E pensar que tudo começou e (terminou)com uma traição...
Abr.
Franciney