sexta-feira, 6 de maio de 2011

Se essa lama fosse minha


Não faz tempo, medida de milhares de anos, a humanidade arrancava da terra o alimento com o suor do rosto. Hoje, com o aperto (que virou toque suave) de um botão (que virou marca digitalizada), o homem aciona uma engrenagem que produz toneladas de aço, faz decolar uma máquina que rasga os céus ou ejeta uma conjunção de plutônio e sofisticados gases que pode ceifar milhões de vidas com a sua explosão.

E, inacreditável, a humanidade está mais triste! Proporcional à população, os índices de suicídio são infinitamente maiores hoje do que a milhares de anos. O psicanalista é invenção secular, tão nova quanto o telégrafo ou a máquina a vapor. Angustiado, o homem procura ‘um lugar onde o seu coração possa respirar em paz’, a movimentar-se nas grandes cidades como um cordeiro entre lobos. E estes se dizem seres que amam, raciocinam e dialogam. Mas, como se fossem formigas, esquecem que um dos pais da humanidade foi o aperto de mãos!

As guerras, que acompanham o homem desde que ele começou a apropriar-se dos bens do planeta, já tomaram conta da rotina humana. Imaginávamos que a guerra fosse um produto da barbárie e seus postulados unilaterais, da ganância de quem se apropria do alheio e de um mundo que não se olhava nos olhos e tão pouco ouvia a palavra do semelhante. Asneiras! A tecnologia do diálogo nunca foi tão farta e generosa, do velho telefone à comunicação pela imensa rede de computadores. Mas, o homem está guerreando mais, se não entre nações, guerreia entre si mesmo, entre religiões, raças e até entre opções sexuais. E, cada vez mais voraz, guerreia entre os que se apropriam da riqueza e aqueles que a produzem.

Produzíamos a riqueza com as próprias mãos ou, no máximo, com a ajuda de um arado de madeira bruta e de um velho quadrúpede, que ainda não tinha consolidada nas hélices tortas de seus genes a submissão ao trabalho. As máquinas, hoje, produzem por nós. Derramamos menos suor, calejamos menos as mãos! E por que essa angústia a se tornar, continuamente, uma tempestade dentro das veias humanas?

Há poucos milhões de anos, o homem vivia cercado pelas feras da floresta assombrosa. Não compreendia os poderosos sinais dos céus, trovões e tempestades, e tão pouco sabia decifrar e curar as moléstias que dizimavam as aldeias nascentes. Todas essas fontes de angústia foram esmagadas pela ciência em expansão, mas o homem moderno está a gastar milhões de moedas em busca da cura daquilo que ele chama de enfermidades da alma. E nem percebe que o seu semelhante é a fera que o acuava na velha caverna. No lugar de uns galhos e cipós, ele coloca barras de ferro nas entradas das sofisticadas moradias, contra as feras que usam balas mortíferas no lugar de suas ancestrais garras.

Caminhamos pelas ruas, carrões luxuosos de nossos semelhantes a cuspirem dióxido de carbono, como um vulcão, em nossas gargantas. Semelhantes! Bela semântica para esvaziar a nossa rebeldia! Onde foi parar aquele velho sonho de fraternidade? Dorme, amedrontado, nas últimas linhas de uma homilia. Dominamos os céus e a estrutura espetacular dos átomos, mas não adquirimos a tecnologia do amor, a ciência da partilha.

E quando pensávamos que as nossas angústias vislumbravam o primeiro porto, eis que alguns imbecis produzem alguns rombos em nossa embarcação. Eles estão entre nós, soltos, usando as nossas velhas camisetas. Não vêem esses palermas que a direita não perdoa! Não vêem esses bobos da corte que a lama deles vai atingir os inocentes!

O que eu tenho a ver com esses “entes” que nos cercam, nos fazem parecer iguais ao passado de dor e nos deixam tão incomodados? O que você, que está há décadas nas frentes de luta, tem a ver com essa podridão? Simples, nós estamos sofrendo da síndrome da uva. Diz a Bíblia: “os pais comeram uva e os filhos ficaram com os dentes embotados”. É isso, quem não tem nada a ver paga a mesma conta. A conta de ser da esquerda, de defender a ética e de estar do lado de cá da mesa.

O que fazer? Deixar e exigir que a justiça castigue, com os seus instrumentos, aqueles que estão do lado de cá, fazendo as mesmas coisas que a direita fazia. E, por se postarem do lado de cá, por puro oportunismo, merecem pagar dobrado! Pois, dizer que a direita fazia a mesma coisa, não deve servir como atenuante, deve ser agravante. De nossa parte, que não nos enlameamos, precisamos olhar para dentro de nós e ver se não há lá dentro, em formação, uma corrupçãozinha. Perguntar se aquilo que esses palermas estão fazendo não é uma doença adulta, permitida e fecundada em pequenas corrupções.

A corrupção humana é bem mais ampla do que um caixa dois, um desvio de dinheiro público, uma compra de votos, um mensalão. Ela caminha desenvolta na hora de uma nomeação, quando se escolhe um fornecedor, num concurso de títulos, numa loja em promoção. Ela alimenta o menino de rua, o desempregado, o sem teto, a prostituta. Sem contar a corrupção privada, que daria outro ensaio, tamanha a sua dimensão.

Fiscalizar esses pequenos sistos, essas pequenas amebas e arrancá-los cotidianamente, é tarefa de primeira hora. Aqui não há segredos! Não é coisa de vontade pessoal ou profissão de fé, é tarefa coletiva. Para essa cirurgia só há um tipo de bisturi. A participação popular, a transparência na gestão pública, o controle social e o diálogo com o povo. O fazer público deve ser verdadeiramente um fazer coletivo, colado no povo e nas suas organizações.

Hoje foi um dia de aprendizagem, que mereceu a republicação desse artigo.




Nenhum comentário: