sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

PANEMA

Capela de São Francisco do Paraíso - Rio Tarauacá

        Peregrinava por varadouros de lama
        Enfrentando cobra grande e poraquês
        Nos tabocais eu matava a sede
        Espantando mosquitos com o meu tabaco
        Fraco, as vezes, eu fui,
        Quando o patrão me mandava calar
        Eu reclamava do preço da estiva
        E do látex que, na verdade,
        Saía de minhas próprias mãos!
        Minha voz ressoava nas sapopemas
        E o mapinguari era o meu algoz
        Quantos filhos enterrei sob os cajueiros!
        Sobre o dorso, o magro sustento
        E o lamento da minha Zefinha
        Nas horas de rede, os gemidos presos
        A paxiúba não podia ouvir!

        No sertão, deixei meus gemidos altos
        Minhas saudades e meus ressentimentos
        Buscara água que trouxesse o pão
        Varadouros que apontassem um abrigo
        E calos que não fossem vãos!
        E foi assim, cumpade Bastião
        Que desde bem novim, feito bruguelo de cotia
        Me embrenhei nas matas do norte, desnorteado
        P'ra não morrer esturricado no sertão
        Tu vévi, hoje, na seca de água
        E eu, cumpade, vivo na seca de pão!

        Entanicei todas as minhas saudades
        Que não queria mais me alembrar
        E aquelas lágrimas do tempo do ronca
        Misturam-se ao meu chibé
        P'ro mode esquecer nossas estripulias
        E todas essas lembranças, Bastião
        Não soltam o meu mocotó
        É como a caipora, assombrosa
        Na ispera, atrais do tabaco!
        Dói na alma, escrever estas linhas
        Fico mais triste que o porco-do-mato
        É como se estivesse amorrinhado de febre
        A ruçara na pele, as mutucas, o pium
        Vai doendo, cumpade, maltrata
        Como se fosse traição de mulher!
       
        O alto só me trouxe panema, cumpade
        Vivo como se fosse um tuiuiú
        Cabeça pelada de tanta preocupação
        E comendo a lama dos pés do coronel
        E nem o belo canto do tuiuiú, meu cumpade
        Sai de minha voz rouca e dentes quebrados
        O que me restou, cumpade Bastião?
        O meu canto morno sobre o mutá
        E os peitos caídos da minha Zefinha
        Vou de bubuia nessas águas ingratas
        Enfrentando tranqueiras e maldições
        Destiorei toda a minha esperança!
        E quando cantar a coã, Bastião
        Vou salgar as minhas feridas
        E perguntar ao meu padroeiro
        Que paradeiro levou minha fé
        Isso eu te garanto, cumpade!
        Não cacei em dias grandes
        Não desrespeitei o resguardo da mulher
        E mesmo com fome, eu juro!
        Às seis da tarde de quinta-feira
        Não fui matar nenhuma nambu
        Na quaresma, não comia carne
        De vêiz in quando, a minha mulher
        Nem tomar banho na semana santa
        E os meus filhos são afilhados do coronel
        Paguei, contrito, todas as minhas promessas!

        Por que, então, esse inferno sobre o meu casebre?
        Nem a sapopema ouve os meus gritos!
        Sobre a gameleira eu faço a ispera
        P'ra ver se o dia amanhece melhor
        Nada além de uma paca morta
        E os meus dentes pubos de mascar tabaco
        Meu corpo de peba e uma poronga
        Essa, cumpade, é a minha canseira!
        Enrolado nas canaranas e nas tiriricas
        Atraído por cobras e cipós encantados
        Piracema de angústias e ingratidões
        Como se a vida fosse uma cintina
        Empanzinado pelas falsas promessas
        Que vêm nos banzeiros do barracão!
        Tenho inveja das guaribas e dos guaxinins
        Seus sonhos não quebram os galhos da imburana!
        E nem o gato maracajá
        Parente bastardo da onça
        Ou a deformidade das tanajuras
        Espantam as minhas maldições!
        Eu é que sou o filho bastardo, precoce
        De uma terra que nunca foi minha
        Lamento enterrar-me com os jatobás
        Abraçar-me ao canto da jaquirana
        Agarrar-me à fé como um carrapato
        E enfezar-me com as tocanderas!      
        Não queira essa sina, cumpade Bastião
        Sobreviver como um rola-bosta
        Sonhos quebrados como as embaúbas!
        De que adianta resistir como a sapucaia?
        Vivendo de mortes como os maparás
        Encoivarando alegrias e os meus jejuns!
       
        Meu cheiro forte de mucura, cumpade
        Eu guardo, revolto, dentro do meu jamaxi
        Meus filhos banguelas como se fossem mandins
        Assustam-se com o futuro e o batedor
        Um grave piché de vida indigna
        Se empanzina na minha colocação
        Os olhos de Zefinha, cumpade Bastião
        Parecem gapós mortos pelo tingui
        Minhas mãos tremem sob uma vela
        E os parentes rezam a sua oração
        As abacabas e os mulungus, Bastião
        Os bacuraus e as jaçanãs, o mutum
        A espingarda chorando na manga de estrada
        A jurubeba e os patoás, o tucum
        Gemem e matam, me amarram
        Na terra que sonhei lá no sertão!
        Uma cova rasa e uma reza misturada
        Um caçoá entristecido, um boto
        Uma imbiara sem rumo e sem pólvora
        De nada valeu meu corpo de jacundá
        E o meu medo de cangati
        Estou morrendo sem quebrar o jejum
        E ninguém vai se alembrar nem da minha carniça
        Inté mais vê, cumpade Bastião!

        E foi assim que se deu, camarada Alberto
        A vida e a morte do meu velho pai
        Talvez, agora, tu compreendas
        Porque meu combate não pode ter volta!
        Como esquecer as feridas das muriçocas?
        O coronel, os quincajús e a humilhação
        A jacuba no remo, o impaludismo
        E os tapiris tiritando de dor!
        Por isso, agarrei-me, camarada, no apuí
        E os tucuns amarram as minhas vontades
        De tornar-me sem alma e sem escrúpulos
        Os poraquês me legaram a sua voltagem
        Para eletrocutar os donos da fome!
        Sou o filho rebelde das colocações
        E o meu sangue não engorda os capatazes
        Eles foram capazes de destruir o meu velho
        Morreu, acabrunhado, entre as varejeiras
        A alma tomada pelo banzo nordestino!
        Esta é minha sina intransigente
        Reaver a colheita do meu velho pai
        Conto contigo, camarada Alberto!

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