quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A MINHA BANDEIRA


A Ausência
O povo usurpado, as suas dores
e os seus sonhos teimosos foram
ocupando o meu tempo gasto.

Eu queria que a senhora me desculpasse!
Não foi só falta de tempo, mãe
Havia vergonha até em minhas veias
Eu andava ocupado com as minhas cicatrizes!
Somente um milhão de horas ociosas
Novos abraços e novas ternuras, mãe
Uma alegria aqui e outra acolá
Deram-me a possibilidade da confissão

Sobre as nossas mãos impacientes, mãe
Não recaía nenhum crime, nenhuma desonra!
Apenas sonhávamos, obstinados, a dignidade
Para os proscritos, os párias do meu país
A madrugada nos flagrava em vigília, mãe
Contra o terror que se instalara sobre a nação
Ainda hoje estamos na busca do inconfidente
Trinta moedas se fizeram escambo da agonia
Eles chegaram feito abutres, mãe
Chutando sonhos e os nossos ossos
O nosso sangue ficou sob as suas botas
E toda a nossa generosidade, mãe
Esmagada pelas pilhérias e pelos cassetetes
Um veículo cinza carregava os meus hematomas
A minha dor era a alegria daqueles verdugos
E foi assim, mãe, sob o jugo dos brutos
Sangrando e esvaziado por dentro
Que eu fui enclausurado numa cela morta!
Sem roupas, sem horizontes e cigarros

O Cárcere
Quantos daqueles que me
brutalizaram estão livres
em dignos cargos da república!

Amarrado feito porco, mãe
Como se eu fosse a besta do mundo!
E os meus sonhos, por si só, mãe
Pudessem destruir todos os pesadelos
Criados por uma elite suja de sangue
  
Narrar a dor de dez anos na cela, mãe
É impossível e mexe com a minha dignidade
Nas madrugadas frias, nuas e solitárias
Eles faziam do meu corpo um campo de guerra
Bastava que eu delatasse, mãe!
Meus companheiros, seu endereço clandestino
Cessariam os chutes, toda e qualquer tortura
Até as ferroadas elétricas nos meus tímpanos, mãe
Os insultos, a falta de sol e as indignidades
A delação, mãe, sepultaria tantas maldições
Os meus livros, os fins de tarde com os amigos
A praça e o aconchego com a minha Maria
A delação, mãe, traria de volta as minhas alegrias
Guardei-as no meu peito qual sonho e pesadelo
Empurrei a delação pela garganta dos algozes!

A Alforria
Não sei dizer o que mais me maltratou:
se as ferroadas dos abutres no cárcere
ou a tristeza de Maria.

Sinto-me sufocado com toda essa tempestade
Não sou mais, mãe, inquilino dos brutos
O ar das ruas tem um gosto de proibição
Gente silenciosa, aos montes, o sol faiscando
Meninos pretos, suarentos, vendendo quimeras
No cais, estacionamento, nas bancas de jornais
Como se a vida invadisse o meu corpo, queimasse
Pode toda essa gente não ter toda a liberdade
Todavia, mãe, elas dividem com a nobreza
O sol da manhã, a irreverência do vento, a chuva
Neles volto a me embebedar, reanimar desejos
Isso os verdugos não conseguiram expropriar!
Sob o chicote do capital e de seus donos sujos
Após dez anos numa cela porca, mãe
Sinto-me livre ao abraçar o vento e as ruas

A Sobrevivência
Enquanto nossos sonhos sóbrios
fecundavam as multidões e as ruas,
os verdugos, livres, conspurcaram
o ventre de tantas marias.
                      
Mas deixe-me falar, mãe, sobre a minha volta
Apesar da ansiedade de abraçar a minha Maria
Perdi o dia todo abraçando as praças e o vento
Ao entardecer, um soluço engasgou minha volta
Parecia que o rádio divulgara a minha alforria!
Nas portas dos bares, nas janelas, mãe
O bairro inteiro olhava p'ra mim, desconexo
Encostadas nos postes, hostes irrequietas
Heterogêneas na curiosidade e no consolo
Como se os deuses e os demônios, mãe
Disputassem os meus pecados e a minha candura
Adentrei, aflito, a porta do meu velho casebre
Tantos anos o tornaram estranho, distante
Maria me aguardava, como se um vendaval, mãe
Houvesse castigado o seu corpo, ferido a sua alma
Nos abraçamos, então, pude senti a dor
Ela estava fria como a morte, a tristeza
Necessário se fez o jogo de cartas, mãe
Doses de álcool e amigos bêbados
Só então, demente, pude perceber
Lembranças entumecendo a minha alegria!
Quando nas folgas magras, mãe
Maria me levava um pouco de consolo
Com o seu sorriso amarelo entre as grades
E eu perguntava como andava a vida
Maria resmungava, ausente: vou indo
Fugindo da falta de abrigo, consolo, talvez!
E quando voltei ao velho casebre, perguntei
Onde arranjastes todos esses meninos esquálidos?
Eram os seus sobrinhos, justa resposta!
A vida era tão indigna na cela, mãe
Que eu precisava de um sonho p'ra me enganar
Talvez por isso, tenha cultivado o belo rosto
A candura, os afagos, cada detalhe de Maria
Esquecera-me de saber da sobrevivência, mãe
Se Maria ousara não viver como os bichos!
Somente agora, eu podia suportar a dor
Dimensionar até onde foi o terror dos abutres
Os algozes não chutaram só os meus sonhos
Meus ossos, endividaram os meus hematomas
Engravidaram também a minha Maria
Em troca de um pão indormido, a sobrevivência
Maria conspurcou a minha espera, entregou-se
Viciados, indignidades, bêbados, boêmios!
Garantiram o sustento de Maria, mãe
E cada vez mais ela tinha que se submeter
Felicidades magras e ejaculações embrutecidas!
Àqueles coitos de provocar compaixão
É que os meninos esquálidos, mãe
Iam brotando feito cogumelos
Exigiam mais pão, abrigo, coitos, indignidades
Era como se ferissem, de novo, os meus ossos
Nem abraços apenas um até logo em estertor
Despedi-me de Maria, mãe, fugindo
Da vergonha de macho e das cicatrizes expostas

A Velha Bandeira
Ela era bela e heróica, todavia,
deixara abrir rasgos por onde
infiltravam-se os argumentos
nocivos da velha burguesia.

Nova vida embala os meus hematomas, mãe
E na agência bancária daquele subúrbio
A morte feito mulher, cabisbaixa, seios, alegrias
E esperanças caídos retira o que posso dar
Eu não consigo, mãe, incriminar a nossa Maria!
É como eu ia dizendo, mãe
Os meninos esquálidos, o barraco, a vergonha
As indignidades forçadas de Maria e as fugas
Não infernizam mais os meus dias

Novos horizontes acalentam minhas possibilidades
Ao reorganizar os caminhos da nossa bandeira!
Erguer horizontes, mãe, não é coisa fácil
E muitos daqueles inscritos em nossa bandeira
Eivaram-se de equívocos e mutilações
Faltou-nos a necessária originalidade, mãe
Copiamos modelos de sonhos e horizontes
Essa é a nossa autocrítica, pecamos na ortodoxia
Sequer, percebemos as ervas daninhas!
Elas estavam entre nós, maculando a colheita
Foi preciso, mãe, que os parasitas voltassem ao lar
Reconquistassem a riqueza expropriada, o suor
Então, a gente, finalmente, se deu conta
Nossa voz se tornara velha e sem eco!
O povo brasileiro não ouvia a nossa pregação
Como um pastor falando de Deus numa zona
Não faltou obstinação, nem zelo ideológico
Faltou olhar para os períodos de transição
Para o jeito que o povo seguia o seu caminho
Formas de organização, seus costumes seculares
Como outras agremiações de esquerda, mãe
Controlavam as multidões, detendo a hegemonia
Do jeito que a gente ia, na pureza dos altos céus
O povo não nos seguia, a elite sossegava e ria
Pois a bandeira que a gente carregava e erguia
Não era a bandeira brasileira e nem a socialista!

A Bandeira Brasileira
Que cada povo erga a sua bandeira,
nós confeccionaremos a nossa.

E o que fizemos, mãe?
Jogamos tudo no lixo, as idéias nobres?
Trinta moedas não comprariam tanto!
Apenas reajustamos os nossos conteúdos
Aposentamos as velhas porteiras e os chavões
Nossas antigas bandeiras renascem, mãe
Trazendo as raízes e a cor original do nosso país
Ternura e pólvora permanecem, mãe!
Te apresento, alguns retalhos da minha bandeira
A minha bandeira brasileira e socialista!

A Unidade
Não nos interessa uma unidade
do tamanho das nossas forças,
queremo-la maior que o inimigo.

Percebemos, enfim, que não detínhamos a posse
Do horizonte que achávamos ser nosso
Outros braços também o erguem incansáveis
Devem estar juntos no plantio e na colheita
Quando o sangue do povo, mãe
Não alimentar mais os vampiros e os lobos
Não terá sentido a gente reclamar
A exclusividade p'ra nossa bandeira
Assim inscrevemos em nosso programa
Outras bandeiras de tez democrática tremularão
Junto à nossa bandeira brasileira e socialista!

A Liberdade
A concepção de liberdade será
sempre o parto mais difícil no
imaginário da revolução.

E a liberdade socialista, mãe?
A senhora de  todas as nossas pelejas
Como deixar que os sanguessugas a usassem
Como álibi para a sua recomposição ideológica?
A liberdade de imprensa e de reunião
A liberdade de culto, de greve e de cátedra
Por que usar as argolas para contê-las?
E as diferenças insufladas pela filosofia?
Não consigo entender tanta idiotice, mãe
De se ter o controle do Estado, da Escola
Dos Meios de Comunicação e das armas
Da Universidade e dos Centros de Cultura
Das Gráficas, mãe, das águas, da terra e do ar
Todavia, feito lobos, trancafiamos em calabouços
Músicos e cientistas, professores e teólogos
Santa incompetência, maldita intolerância!
O povo voltou aos barracos, à prostituição
Porque, simplesmente, mãe, simplesmente
Não entendemos que as idéias, a fé, a filosofia
São reflexos exatos da matéria em movimento
E que esse movimento da matéria privatizada
Completou dois milhões de anos de história
Sequer, mãe, nos lembramos do Homo Habilis!
Consideramos que foi um equívoco, mãe
Tratar idéias adversas a ferro e fogo!
Assim inscrevemos em nossa bandeira
A nossa bandeira brasileira e socialista!

A Aldeia
As dores locais, expostas, devem,
necessariamente, ocupar o rosto
da nossa bandeira socialista.

Criaremos as condições materiais para o povo
Poder distinguir entre Júpiter e Prometeu
Nenhuma idéia terá como alcova uma cela!
E até atingir o horizonte socialista, mãe
Não artificializaremos nenhum método de luta
No leito da vida, onde resiste o povo
Ergueremos a nossa bandeira, aberta
Nas condições que exigir a cor de cada combate
Regionalizando, mãe, a nossa bandeira socialista!
O que mantivemos em nossa bandeira, mãe
Foram apenas as vértebras da luta de outros povos
Os princípios imortais em defesa dos proscritos
Queimamos cartilhas, chavões e estereótipos
Imprimimos a cor morena, o sangue índio, o ritual
Como irmãs siamesas, nossa bandeira é uma só
A bandeira brasileira é a bandeira socialista!

Talvez, não seja uma nova bandeira, mãe
A água é a mesma, os mesmos sinais
Conquanto, o leito tem as suas represas
Barrancos desmoronam, há, ainda, as pororocas
E a melhor embarcação é a que vence o rio!
Estamos mais pragmáticos, mãe, mais radicais
Descobrimos a raiz do movimento socialista
Nossa escada estratégica vive!
Mas cada pequeno degrau da aldeia, mãe
É a carne que cobre a vértebra da nossa bandeira
Nossa bandeira brasileira e socialista!

O Sagrado
Não tem jeito: o medo da morte
é tão velho quanto a fome, nasceu
com o Homo Habilis e não terá
cova em uma dezena de anos!
                      
Descobrimos indignados, mãe
Que nem todos os gritos conduzem uma boiada
Veja, por exemplo, o estrago dos mercadores
Milhões de patriotas sob o aço invisível
Dos leiloeiros da fé e da esperança!
Por que combater os deuses do Olimpo?
Se as massas famintas vivem de sonhos!
Por que não verberar contra as coisas palpáveis?
Quando o horizonte for nosso, mãe
E o povo se apropriar, pelo menos, do alfabeto
Quando a fome for expulsa de cada casebre
As montanhas sagradas conhecerão o degelo!
Por si só, mãe, nem celas e nem argolas
Os velhos deuses voltarão aos livros de história!
O ópio do povo nos livros sagrados do Apocalipse
Será alimento nas mãos dos profetas do socialismo
Desafiará os marxistas a reconstruir lentamente
A certeza no movimento eterno de toda matéria
Incluindo as bandeiras românticas que agrediam
A nossa bandeira brasileira e socialista!

A Utopia
A leitura do nosso programa
é análoga a Deus anunciando
a Adão e Eva o paraíso.

Há muitos anos a senhora observa meus sonhos!
Trabalho digno para todos os patriotas
Saúde pública, escola, segurança, alegrias
Que o espírito humano arrebente as suas amarras!
Cuidar do planeta como se fosse a nossa alcova
Compartilhar o pão e as esperanças nas ruas
Estudar que terra, produto, usina ou fábrica
Deve ficar nas mãos do Estado e o que deve
Permanecer nas mãos dos antigos donos
O que deve alavancar nossa força produtiva
E olhar para o permanente e para o transitório
Não deixar que experiências virem princípios
E que esses princípios nulos não apressem a volta
Dos velhos homens com neurônios de lobo
Talvez não precise te dizer, mãe
Que este é o nosso programa e a nossa bandeira
A nossa bandeira brasileira e socialista!

O Principal
Perceber o que é principal e
o que é periférico, na luta de classes,
não é tarefa de poucos neurônios.

Mas o que ocorreu de inexplicável
Para que tantos sonhos incontestáveis
Dormissem ao relento, distantes do povo?
Por longo tempo, intransigimos no mesmo caminho
Como se a verdade tivesse cartórios e tabeliães!
Hoje tenho a clareza bruta, mãe
Mais vale um princípio regionalizado, palpável
Sob o domínio das multidões em guerra
Do que um princípio fechado, intangível
Sob o controle de poucas e sábias mãos!
Perdemos tanto tempo, mãe, com utopias
Falando para nós mesmos, para nossa satisfação
Tínhamos medo de reconstruir as idéias ancestrais
Quem melhor copiasse e refletisse os modelos
Era líder dos guerrilheiros de fundo de quintal
O povo, mãe, continuava no imaginário do algoz!
Nossa bandeira, sem vender sua vértebra ancestral
Fez-se carne entre os proscritos, fez-se vendaval
O anjo da nossa utopia voltou para o leste, mãe
Nossa utopia, agora, sem tirar nem pôr
É garantir que o povo coma três vezes por dia!
Produzir alimento, alfabeto, riqueza para dividir
Essa, mãe, é a nossa real e próxima utopia!
Queremos confeccionar o mundo das rosas, mãe
Com os seus espinhos a resguardar a mesa farta
E suas pétalas a repartir o trabalho comum
E isso, sabemos, é guerra de várias campanhas
Por isso, não podemos errar por tantas vezes!
Para que icemos, sem demora, no centro do poder
O povo em festa(!), a nossa bandeira
Nossa bandeira brasileira e socialista!

A Ternura
Um ideal estratégico não sobrevive,
se não for cercado de ternura.

Acho que vou me despedir, mãe
Diga ao papai que eu volto um dia!
Quando os famintos satirizarem a fome
As mulheres não mais sentirem as dores de Eva
A rebeldia da juventude não dormir numa cela
E os canaviais forem donos de todo o suor
Diga aos meus irmãos que não os esqueci
E que, em breve, irei abraçá-los!
Quando a periferia plantar alfabetos
E o espírito do homem exorcizar a privação
Pode ficar tranqüila, mãe
Até os medos do papai e as rezas da senhora
Nós inscrevemos em nossa bandeira
Nossa bandeira brasileira e socialista!

Se pudesse, mãe, mais sonhos compartilharia
É que a história me chama lá fora
Multidões irrequietas, fogueiras querendo acalanto
Quem sabe, no próximo comboio
Eu possa confessar mais sobre a minha bandeira!
Ah! Não se esqueça de chorar por Maria
Na essência, mãe, ela se conspurcou
Porque eu a abandonei pela minha bandeira
     Minha bandeira brasileira e socialista!

Um comentário:

Acreucho disse...

Socialista ou comunista?