sábado, 29 de janeiro de 2011

CONTOS DE DOMINGO


O MENINO QUE VEIO DO CÉU
                         Jari não nasceu como os outros curumins de sua aldeia. O galo já cantara seis vezes. E olhe que o pajé deduzira o canto do meio dia e o canto do entardecer. Todas as ervas e todas as raízes. Fígados de peixe, olhos de jibóia que, ensinavam os mais velhos, servem para encantar na floresta e curar os bruguelos que do ventre não querem sair. Jari fez calar todo o silêncio da aldeia. Por sua causa, o Conselho de Anciãos se reuniu e deliberou. Somente os galos podem cantar! O Uirapuru inconsolável ficou, a graúna se fartou no arrozal. Até o riacho, Igarapé do Anjo o nome, guardou seus murmúrios para a festa do parto. Os amantes sob as tendas degustaram seus êxtases sem soltar um gemido. Os cães vadios e os cães de caça não fizeram o tradicional anúncio sonoro da lua. A anciã não pode dizer, chorando, que um dente apodrecido a esmagava de dor. E a mãe de Jari não paria!
                         Quando a lua, exausta, cedia lugar ao novo dono dos céus e o orvalho, inquieto, retornava ao abrigo, um choro forte e zangado acordou toda a aldeia. Jari, o menino que veio do céu, fazia a tenda dos pais um lugar de dor e alegria. As lágrimas de Ojipa, o pai, mais se assemelhavam a uma chuva na madrugada. Era mais para sentir do que para admirar. Jadani, a mãe, pelo contrário, fazia da tenda um riacho de água morna. Suas lágrimas eram bênção e descanso. Quanto ao pajé, era como se a claridade de mil vulcões emergisse de seus olhos ancestrais. Fizera viver um curumim que toda a aldeia, em silêncio respeitoso, se despedira há meia dezena de luas. Todavia, as outras aldeias estavam ansiosas para descobrir porque um curumim que não queria nascer provocou tanta angústia e tanta dor. Se a cada noite jatos de sêmen primitivo engendravam seis ou sete curumins! Era um curumim especial? Todas as aldeias queriam saber!
                        Jadani era uma bela adolescente de olhos queimados. Quando os seus olhos encontravam os nossos parecia que o sol dentro deles estava. Seus lábios tinham mais graça que o andar das gazelas. Não falarei de seu ventre, um rústico tecido de algodão o protegia do mais renomado escultor o cinzel. Cabelos da cor de uma noite de temporais. A escassa pele que se via, da pernas, do rosto, dos braços, não tinha sido tocada a não ser pelos dedos de suas próprias mãos. Jadani era a amante que todo guerreiro sonhava. O velho cacique Jerani, seu pai, a protegia como se guarda um cristal, um gole de água nas mãos. Ojipa foi o escolhido. Primo segundo de Jadani e herdeiro do cetro de Igarapé do Anjo. Atributos físicos, exímio caçador, desenvolvido na arte do amor e valente. Tornou-se o noivo da bela Jadani. Quando a primavera voltasse, Ojipa e Jadani fariam a aldeia dançar sob a claridade da lua e o som animista da pele de leopardo.
                        Luas tristes, minguantes, luas novas, crescentes. Cada lua que se ia fazia aumentar o desejo de Ojipa. Se Ojipa contasse os colares, braceletes de tucum, pedras do rio e mulungu. Guardasse os momentos que a desejou. E, se fosse civilizado, os momentos em que pecou. Agradecia a Tupã por não ter aparecido nenhum padre enfadonho a falar do inferno, paraíso e pecado. Desejava Jadani com uma intensidade que o fazia lobo, formigueiro, temporal. Se não fossem as regras tribais, o cetro de Igarapé do Anjo, o ritual, Ojipa teria possuído Jadani. Ela também o queria, percebia-se nos seus olhos de sal. Como dois bêbados que querem ir ao chão, conseguiram agarrar-se na lua que traria o sagrado casamento. O tempo passou.
                        Numa manhã de Domingo, quando a aldeia acorda fria e sem afazeres [e o que mais aborrece é o latido insosso dos cães], Jadani acordou o pai, radiante:
                        - Pai, deus Tupã me visitou!
                        - Que dizes, Jadani, que blasfêmia proclamas?
                        - É verdade, meu pai, nosso deus esteve entre nós!
                        - Tiveste um sonho, Jadani, e pensas que Tupã se encarnou.
                        - Não, meu pai, Tupã me acordou e falou da antiga profecia!
                        - A profecia ancestral onde Tupã coabitará com uma filha de nossa aldeia?
                        - Sim, meu pai, nosso Deus descerá na lua cheia e deixará em meu ventre um filho sagrado!
                        - Deus Tupã, tenha piedade de minha filha e da minha honra!
                        Na mesma tarde daquele dia, o Conselho de Anciãos se reuniu, secretamente, numa clareira distante de Igarapé do Anjo. Onze anciãos ouviram o relato do velho e sábio guerreiro Jerani, sem graça, deu início à reunião:
                        - Nobres membros do Conselho de Anciãos, há infinitas gerações que as nossas decisões são coletivas. Trago-vos um problema que não é de caça ou herança, casamento ou pescaria.
                        - Dize-nos, Jerani, que problema aflige a tua alma?
                        - Minha filha Jadani recebeu a visita de Tupã!
                        O Conselho de Anciãos tornou-se uma folia de curumins na beira do igarapé. Ninguém se entendia. O velho cacique alterou a voz:
                        - Meus amigos, eu mesmo fiquei incrédulo, achei uma blasfêmia!
                        - Por que, então, Jerani, não reprimiste tua filha e deixaste esse assunto morrer na tua tenda?
                        - Porque a chegada de Tupã tem data marcada, a primeira noite da lua cheia. Jadani prepara-se, todos os dias, para a noite em que vai dormir com Deus.
                        - Tua filha não está doente, Jerani? Já conversaste com o pajé?
                        - Vós não entendeis! Minha filha acredita que Tupã descerá. Não esqueçais que ela se agarra na profecia que alimentou Igarapé do Anjo por infinitas gerações. Da velha anciã ao mais tenro curumim, nossa aldeia daria todo o seu sangue para se consumar a profecia.
                        - Se disséssemos que Jadani está doente? Um.
                        - Como ficaria a honra de Ojipa, o guerreiro pretendente? Dois.
                        - E se, de fato, Tupã descer na lua cheia? Três.
                        - Não esqueçam que Jadani é mulher, pode segredar às mulheres de outras tendas o que vai ocorrer sobre a nossa profecia. Quatro.
                        - Tupã pode até não vir. Na dúvida é melhor preparar o seu caminho. Cinco.
                        - Mesmo que Tupã não desça em Igarapé do Anjo, a honra de Ojipa terá sido tragada em poucas luas. Seis.
                        Quase todos os anciãos se pronunciaram. Temor e dúvidas alagaram a clareira e os corações. Um ancião ponderou:
                        - Precisamos organizar o ritual da descida gloriosa de Tupã. Sete.
                        - E como ficará a honra de Ojipa? Oito.
                        - Ojipa deve ser preservado em sua honra, no ritual que aprovar o Conselho de Anciãos. Nove.
                        - Como pretendes salvar Ojipa do infortúnio e da desonra? Dez.
                        - Mudando a nossa milenar tradição. Ojipa deve, hoje mesmo, dormir com a donzela Jadani. Onze.
                        Apenas o velho guerreiro Jerani não falou. Todavia, nem a sua idade foi capaz de conter a sua colérica reação:
                        - Estás a dizer que minha filha Jadani deve entregar o seu corpo virgem ao guerreiro Ojipa antes do casamento?
                        - É apenas uma parte do ritual!
                        - Dize-nos, então, que milagres tens para salvarmos a honra de Ojipa, a pureza de Jadani e a integridade de nossa profecia.
                        - Devemos anunciar à toda aldeia que Tupã visitou Jadani.
                        - Dizes que precisamos colocar nossa versão e nosso ritual na voz de Tupã?
                        - Sim, o deus Tupã anunciou a Jadani que o ritual do casamento deve mudar. Este é o sinal para que se cumpra a profecia. Os nubentes, a partir de hoje, realizarão um ato de amor trinta e seis luas antes do casamento.
                        - E por que trinta e seis luas?
                        - Nessa noite faltarão três luas para Tupã descer e visitar Jadani.
                        - Estás a propor enganarmos o próprio deus Tupã?
                        - Não, enganaremos Ojipa, preservando a sua honra!
                        - De que forma conseguiremos tamanha façanha?
                        - Levando Ojipa a acreditar, junto com toda a aldeia, que o filho é seu.
                        - E Tupã aceitará?
                        - Tupã saberá que o filho é seu. Ojipa dormirá com Jadani. Nessa noite a aldeia amanhecerá em festa.
                        - Que segurança teremos em que Jadani não fecundará?
                        - Chá de sementes de mamão uma noite antes de Ojipa possuir Jadani.
                        Terminava ali a longa reunião do Conselho de Anciãos. Na noite seguinte, sob uma lua insurgente, latidos de cães, piados de coruja e vôos rasantes de pirilampos, a aldeia se reuniu. Toda a aldeia se convenceu da realização da profecia e da mudança profunda nos seus rituais. O mais radiante era Ojipa!
                        Trinta e seis luas cruzaram os céus. A noite marcada chegou. A aldeia era festa, amendoim, mandioca cozida, caiçuma, peixe assado, jenipapo na pele guerreira, colar de tucum, pele de leopardo, tambor, dança e alegria. Ojipa possuiu Jadani com a impetuosidade de um vendaval. Na manhã seguinte partiu para uma longa caçada. Assim decidira o Conselho de Anciãos. Ojipa, na volta, ouviria falar que uma nuvem de luz cobrira a sua tenda. E isso nada demais seria. Jadani diria: Tupã me visitou em sonho, Ojipa, e disse que o nosso filho é um menino sagrado que o céu nos deu de presente.
                        A noite sagrada chegou. O Conselho de Anciãos providenciara todos os detalhes do ritual. Argumentando recepção à Ojipa, que retornaria da longa caçada, fartos barris de caiçuma foram distribuídos à toda aldeia. Quando o entardecer se anunciou, os velhos e os guerreiros, as mulheres e os adolescentes, os cães e a lua dormiam cada um em sua tenda. Nada e ninguém percebeu quando Tupã desceu na tenda de Jadani, muito menos ouvir os gemidos sagrados da garganta de um deus. Jari, o menino que veio do céu, foi gerado no útero de Jadani, como um sinal de satélite que, invisível, produz a imagem que encanta os olhos.
                        Jari nasceu apenas três luas a mais do tempo da gestação, considerando o fictício dia biológico da fecundação. Ojipa não percebeu. Tornou-se o pai de um menino sagrado que, após a fecundação, recebeu a visita de Deus. Foi preservado na sua honra. Jadane dormiu com Deus! Agora todas as aldeias compreendiam porque tanta dor e agonia no parto de Jari, o menino que veio do céu. É que sua mãe, depois de fecundada, recebera a visita sagrada de um deus!
                        E Jerani, avô, encheu-se do espírito do bem das matas e dos igarapés e profetizou, dizendo:
                        Louvado seja Tupã, deus de Igarapé do Anjo, porque visitou Jadani e fecundou um menino sagrado, na tenda de Ojipa, seu servo tribal.
                        Como estava escrito na profecia, guardada nos ensinamentos de nossos pajés, para nos salvar das aldeias inimigas e do poder daqueles que trazem uma flecha que vomita o fogo e a morte, para cobrir com misericórdia os nossos pais.
                        E tu, menino que veio do céu, serás chamado Pajé de Tupã, para alumiar os que estão dormindo na noite e nas sombras da morte, para dirigir nossos passos no caminho da paz ancestral.
A Terra dos Diamantes
                        O guerreiro Ojipa, aos gritos, anuncia a sua chegada. Nenhuma caça sobre os ombros ou dentro do jamaxi. Toda a aldeia acorreu ao seu encontro. O velho guerreiro Jerani foi o primeiro a balbuciar:
                        - O que aconteceu, Ojipa, para provocar tanta aflição? Foste ferido de morte, uma serpente venenosa o picou, uma assombração?
                        - Não, Jerani, algo pior está por vir. Os guerreiros da flecha que cospe fogo e morte estão para chegar a Igarapé do Anjo!
                        - Que dizes, Ojipa, que nossa aldeia ancestral vai ser destruída?
                        - Eles não querem, Jerani, destruir os velhos e os adultos. Sabem que o tempo da civilização disso cuidará. Os invasores não precisam de armas, basta a varíola para nos dizimar!
                        - Que querem, então, os donos da flecha que cospe fogo e morte?
                        - Matar todos os curumins que tenham menos de dois anos!
                        - Como descobriste essa artimanha?
                        - Ouvi um capitão do mato dizer: vamos matar os curumins, pois dentre eles nascerá um que apascentará Igarapé do Anjo e reunirá os povos das águas.
                        Depois de ouvir atentamente, Jerani ordenou:
                        - Levanta, toma o curumim e a mãe Jadani, foge para a Terra dos Diamantes e fica lá até que um pássaro sagrado te avise com o seu canto!

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