terça-feira, 23 de novembro de 2010

DE VEZ EM QUANDO UM CONTO


Os meninos de Betel

                                                                   2Rs.2,23-24


                   Após testemunhar a assunção de Elias, o profeta Eliseu partiu para Jericó. De lá ele subiu para Betel. Enquanto ia subindo a estrada, um bando de meninos saíram (sic) da cidade e começaram a gritar: “vem subindo, seu careca! Vem subindo seu careca!” Eliseu se virou e, quando viu os meninos, amaldiçoou-os em nome do Senhor. Então saíram duas ursas do mato e despedaçaram 42 destes meninos. Em seguida se dirigiu ao monte Carmelo e de lá voltou para Samaria.

                   Não tardou muito e o povo de Betel, revoltado e atônito, concentrou-se em frente à pequena sinagoga. Homens sábios e homens rudes, mulheres e crianças. Belas jovens de Betel e moços com sede de sangue. A praça da sinagoga tornou-se um campo de guerra. 42 casais, aflitos, exigiam dos escribas uma explicação. Um protestou:
-      O que fez meu filho, rabi, para merecer tamanha punição?
Outro verberava:
-      Que culpa tinha o meu filho, rabi, na calvície do profeta Eliseu?
Mais um chorava:
-      Meu Deus, vós não podeis ser responsável pôr tamanha aflição!
Uma mãe gritava, como se uma espada ferisse a sua carne sedada e a sua alma aflita:
-      Pai do céu, trazei de volta o meu filho!
              Era uma dor infinita que brotava de cada pedra da sinagoga sem voz. Um vendaval de morte e abismo, a dominar os muros, os cães, as almas, os telhados de barro cozido, as túnicas surradas, os dentes apodrecidos e os vasos sagrados da Casa de Deus. Os escribas estavam aflitos. Foi então que um jovem escriba, destacando-se do grupo, falou à multidão irrequieta e hostil:
-      Tenhais fé, meus irmãos! Olhai para os montes!
               A multidão, em transe de dor, ouviu um barulho alegre a aproximar-se de seus tímpanos extenuados. Três dezenas de meninos desciam o monte, em alvoroço. Foi como se Deus, com todos os seus anjos, invadisse a terra, sob o signo sonoro de mil trombetas. Abraços desesperados, lágrimas e risos. Trinta pais e mães exultando de alegria. Na verdade, era alegria e dor, mais alegria que dor. Doze pais continuavam em desespero e trinta sob os efeitos do reencontro. Um dos doze, insatisfeito, protestou, com justa razão:
- Que justiça divina é essa, rabi, que devolve aos pais, apenas, uma parte dos meninos de Betel?
Um outro diagnosticou:
- Faltam 12 meninos, rabi, que uma das ursas não vomitou.
O jovem rabi, como se um anjo organizasse a movimentação das ondas sonoras de suas cordas vocais, exclamou:
- Meus inestimáveis irmãos, vós fostes os escolhidos. De vosso sêmen mortal e profano nasceram os gladiadores de Deus.
- Que queres dizer, rabi, com essa indecifrável pregação?
- Deus escolheu vossos doze filhos e filhas para cumprir uma missão.
- De que missão falais, jovem rabi?
- A missão, povo de Betel, de sustar o mal antes que ele domine.
- E o mal, rabi, já não está entre nós?
- O mal que ronda nossas almas, irmãos, nós não podemos apalpar. Mal maior virá que, além de tocá-lo, dominará nossos casebres, nossas almas e nossos povoados.
- Podeis explicar melhor, jovem rabi?
- O mal que domina o homem, desde que ele iniciou o manuseio de ferramentas.
- De que ferramentas, rabi, nasceu o mal que oprime a alma?
- Industrializar a pedra, arar os campos, confeccionar as vestimentas, domesticar as feras selvagens e erguer rústicas moradias.
- E o que isso, rabi, tem a ver com o mal de que falais?
- Elas levaram o homem, irmãos, a articular a palavra, refletir sobre o que tocavam com as mãos, enxergar, sentir com o nariz e o paladar e ouvir.
               - Que mal, rabi, faz o homem em tatear, enxergar, apalpar, cheirar e ouvir?
- Vós nada entendeis de vossa própria história! Os sentidos do homem, existentes em todos os animais inferiores, fizeram nascer algo indevassável e magnífico que garante a vós, neste instante, questionar os desígnios de Deus para os vossos filhos.
              - Que força magnífica é essa rabi, que nos leva a discutir com o próprio Deus?
- É a força da reflexão, povo de Betel. Só os homens construíram o pensamento abstrato, a elaboração de idéias e de opiniões.
- Por que os animais inferiores, jovem rabi, não podem dialogar com Deus?
               - Sem dúvida, irmãos, porque eles não construíram mãos preênseis e retráteis.
              - Vós estais enganado, rabi, os macacos tem, também, essas características.
- Todavia, irmãos, os macacos não transformaram suas mãos em ferramentas que fabricam ferramentas.
- Vós vencestes, rabi, todavia, dizei-nos: onde estão nossos filhos?
- Eu acabei de indicar-vos onde estão vossos filhos!
- Sentimos muito, rabi, mas, não nos servem as vossas explicações.
- Eles estão em todo lugar e em toda época, irmãos.
- Podeis mostrar o lugar, para que possamos correr e abraçar nossos filhos?
- Vós não podeis abraçá-los!
- Que justiça celeste é essa, rabi, onde um pai e uma mãe não podem abraçar os próprios filhos ausentes?
- A justiça de um sofrer pelo outro.
- De que sofrimento falais, jovem rabi?
- Do sofrimento da humanidade! Vossos filhos destruirão a morte, a intolerância, a fome, a peste, a devastação dos recursos naturais, a tristeza e a desonra.
- Onde estão eles, agora, rabi?
- Cumprindo o seu heróico papel: destruir o mal que assola a humanidade!
Nada mais falou o rabi. A multidão, confusa e desajeitada, retornou às suas insalubres moradias. O sol se pôs e a lua ocupou o seu lugar. Um cão vadio uivou pôr toda a noite. Um galo teimoso acordou o vilarejo. Um menino salvo das garras das ursas foi buscar água no poço e encontrou uma samaritana. Esta o aconselhou a retornar às entranhas das ursas. Um carpinteiro consertou um telhado sombrio. Uma ovelha desgarrada buscou o refúgio do aprisco. Um ancião foi sepultado sob cânticos lúgubres. Aquele século teve fim e morreu, como o sopro de um felino, mais um milênio.
A tarde caminhava trôpega, quando o pescador percebeu algo estranho cintilando nos barrancos. Ávido, porém, cauteloso, Pedro aproximou daquele objeto que mais parecia uma arca. Enferrujada, aparecera com as águas do último inverno. As pororocas haviam comido mais de dez metros daquele portentoso barranco, às margens do rio Jordão. A arca, com certeza, estivera ali, por milhares de anos. A espessura magnífica de suas bordas, corroídas, indicavam, a grosso modo, a sua idade milenar. Como se estivesse a decifrar os céus, o pescador, ergueu-a sobre os ombros. Dentro de sua canoa, imaginava sobre o seu conteúdo. Tesouros magníficos! Riqueza infindável! Na sua pobreza absoluta, aprendera a sonhar com uma vida de ouro e luxo. Na verdade, o ouro de Pedro era uma roupa e uns sapatos novos para os filhos banguelas e um “corte” para Rita, sua desajeitada mulher. E o luxo daquele rústico pescador repousava em poder realizar umas farras com álcool e mulheres, depois de reverenciar São Francisco padroeiro.
Absorto em seus sonhos, Pedro não deixava de pensar em quem iria ajudá-lo a decifrar os segredos daquela arca. Sem muita explicação, não demorou em visualizar a imagem do padre da paróquia. Demora pouca no seu casebre, arriscou-se, com uma arca no ombro, a seguir para a casa do vigário. Explicados, sem demora, os pormenores do achado, pôs-se a abrir a arca, auxiliado por um velho machado, a cortar a ferrugem milenar, e a curiosidade comedida do pároco. Este, quando a velha tampa da arca deslocou-se, esboçou um sorriso largo. Pedro, todavia, baixou seus olhos e não controlou a sua tristeza. Grossos rolos de pergaminho ocupavam todo o interior da arca. Nenhuma moeda! Nenhum punhal ou candelabro de ouro! Pedro, sem graça, despediu-se do vigário. Foi necessário que a noite chegasse, para que aquele pescador afogasse a sua tristeza e o seu desencanto entre as belas e quentes pernas de Rita. E dele nunca mais se falou!
O padre, todavia, mal esperara a saída de Pedro. Sitiado em seu quarto, como se um exército pagão e profano quisesse invadi-lo, o vigário pôs-se a manusear aqueles manuscritos. Incrivelmente bem conservados, aqueles pergaminhos, escritos em aramaico, contavam uma inacreditável história: o destino dos 12 meninos de Betel. O padre ficou atônito. Graças a Deus, resmungou, por ter me dado a graça de aprender aramaico! Nessa noite não dormiu, consumido pela leitura milenar e sua descoberta. Dizia assim a mensagem do primeiro manuscrito!
               As duas lobas embrenharam-se na floresta, descortinaram planícies, cruzaram os mares e o tempo imemorial. Em cada tempo milenar e em cada canto do mundo, elas vomitavam um menino. Uma loba seguiu o tempo, na direção do futuro, a outra retornou ao passado. As lobas, povo de Betel, são anjos decaídos enviados pelo patriarca do mal! Percorrerão o mundo e o tempo no intuito perverso de devorar o próprio homem, que tornou-se lobo de si mesmo. Assim pensou o deus dos abismos : “ora, se o homem é o próprio lobo do homem, por que não destruí-lo por suas próprias mãos?” Seguiam as lobas, na sua carnificina do mal, destruindo, desunindo, consumindo gorduras, casebres e procissões, entortando, matando, conspurcando,  mutilando gerações, desejos coletivos, nativos, impulsivos, vitais, produzindo orgasmos doentios, espasmos sombrios, crimes hediondos, apocalipses, condenando infantes, mulheres, velhos doentes, sonhos decentes, coerentes, anormais no seu tempo, ancestrais, vendavais de agonia, almas sadias, contrariadas, apagadas sob o terror, espalhando odor de sangue e peste, teste de dna, para descobrir quem desobedecia ao rei, à lei de morrer sem reclamar, ao frei que matava quem o papa mandava queimar, denunciando guerrilheiros das montanhas e do povo do lugar, adulando a sanha do grileiro e do corvo de além-mar, a terra maldita, proscrita, bendita na homilia do vigário, salafrário de alma e fé, perdulário, maomé e hezbollah, genuflexas, as mechas no rosto do cardeal, animal e sacrossanto, espanto de igrejas contrariadas, encanto dos miseráveis do mundo, avareza do rico glutão, condenáveis, imundos, ladrões, anões do dinheiro de todos, engodo, malversação, galinheiro de porcos, sujos, tortos, obtusos, traiçoeiro, nossos, confusos e pálidos, ácidos, nervosos, ansiosos por tudo, comida, alegria, escudo, histeria da elite, grafite de uma luta, oculta e clandestina, menina aviltada, deflorada, pequenina, indefesa, engravidada pelo invasor, presa, sem ninguém, covardes, protegida pelo pai, a  mãe, a aldeia, a teia, condenada no paraíso, o riso da serpente, ouvindo os gritos nas dores do parto, o suor do rosto, um marco, adão e eva, conserva o pecado, o legado, a desobediência, a coerência do sêmen primitivo, o silvo da faca matando abel, caim perseguido, o fel da marca no rosto, sete gerações, perseguições, idolatria, aflições, o adultério no dorso, sara, abrão, faraó, clara vontade divina, ferina, mistério, o pó do deserto, ingresso na tribo, acesso, trigo no silo, asilo, manifesto, putifar, sonho no cárcere, atesto o crime, minha mulher, meu reino, sete vacas, gordas, magras, josé, espigas, verdes, mirradas, admiradas, intrigas, pajé, cajado, deserto, tábuas da lei, bezerro de ouro, couro de boi, egito, cebolas, aterro e morte, sorte, semita, moisés, mar, escrita, revés, vermelho, espelho e fuga, ruga e cova, leite e mel, réu, azeite, anos, quarenta, danos, aguenta, burro e pé, salomé, bandeja, joão batista, deseja, herodes, arrisca, o trono, faisca, zelotes, fariseus, roma, serrotes, cruz, saduceus, pregação, jesus: ”bem aventurados os pobres que vivem no ventre da loba!”

Um comentário:

Alma Acreana disse...

Caro Moisés,

realmente sua pena está cada dia melhor. Conto desconcertante, fascinante!

Parabéns!