quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

O Brasil inteiro está discutindo a nossa indignação






2 comentários:

Ana de Longe disse...

A massa de que somos feitos

Caro Moisés, ainda no rastro da nossa conversa iniciada sobre o crime ocorrido em Sena Madureira, andei vendo os comentários dos leitores do Blog do Altino. Pensando sobre o que li, partilho com você o seguinte:
Talvez seja interessante conversar aqui sobre duas questões diferentes, mas misturadas na entrevista de maneira confusa, inclusive nas perguntas do agente dos Direitos Humanos reproduzidos no blog. Primeiro uma coisa é o Estado de Direito, que precisa existir e não pode estar sob suspeita. O que os Direitos Humanos historicamente fazem é defender o Estado de Direito, o qual, como brasileiros a pouco saídos da ditadura e com pouca experiência democrática, não sabemos a importância e desconhecemos a sua necessidade. Há algumas garantias que precisam ser dadas aos brasileiros, garantias constitucionais, como o julgamento justo e imparcial e o amplo direito de defesa. Entendamos que isto não é a defesa do criminoso, pois legalmente (a culpa pelo crime) só se determina com o julgamento. Isto é a defesa de qualquer cidadão, é a defesa de que não seremos julgados aleatoriamente, por pessoas que não estão preparadas para isto ou que queiram nos prejudicar intencionalmente. É a defesa de que viveremos para ser julgados pela sociedade e sofrer as consequências do ato praticado. Segundo, e bem diferente, é a pena de morte. Podemos ter Estado de Direito com e sem pena de morte (embora eu ache que um Estado de Direito com pena de morte tem mais de Estado e menos de Direito). Seja qual for a opção, como tal precisa funcionar. Sobre a pena de morte, somos todos muito tolinhos e fingidos. Quando vamos à igreja ou nos debates, muitas vezes, assumimos logo a posição de que somos contra (é mais moralmente aceitável). Quando acontece algo como esse crime, então o monstro sai do lago escuro da nossa alma a toldar as certezas aparentes, e ficamos confusos, sem saber o que pensar. Entramos em contradição com a nossa herança judaico-cristã. Passamos a ser coisas estranhas e incompatíveis como cristãos fervorosos a favor da pena de morte (e não mencionemos a inquisição, cruzadas ou guerras santas, estou falando daquilo que hoje em dia é consenso do ponto de vista das mensagens religiosas maioritariamente aceitáveis). Não se é contra ou a favor a pena de morte a fingir. Ou refletimos sobre o assunto e assumimos uma posição coerente ou continuamos tolinhos e fingidos. Seremos contra nos debates, nas igrejas e nos palanques e a favor quando a vida real nos atingir com um soco. Onde está o contra-senso? afinal, querer a pena de morte para o culpado desse crime tem muita lógica. Não, não tem, senão o debate da pena de morte seria uma questão superada e não causaria tanta polémica. A polémica está em que, para muitos, uma pessoa, mesmo sendo culpada por um crime hediondo, não deve pagar com a própria morte. Entendemos, na nossa Constituição e leis aplicáveis (pelos menos se não estivermos em guerra ou se não formos obrigados a agir em legítima defesa): primeiro, que a morte é inaceitável; segundo, que há um tempo delimitado em que uma pessoa deve pagar por um crime; terceiro, que a morte não é uma pena aceitável, porque é uma pena que não cessa. Não é possível ressuscitar um culpado, depois de estar suficientemente morto. Nem um inocente. Assim entenderam os nossos deputados constituintes. Se aplicarmos uma pena de morte a um culpado, ficaremos bem com a nossa consciência (ficaremos?). E se aplicarmos uma pena de morte a um inocente? Podemos dizer: “Mas o Magaiver era culpado”. Não sei, o Magaiver não foi julgado por quem deveria, no Estado de Direito. Concordamos, como sociedade, nas nossas leis, que os mecanismos do Estado de Direito é que devem agir devidamente legitimados e capacitados para esta responsabilidade, com os meios necessários para que a justiça funcione adequadamente. (cont...)

Ana de Longe disse...

(continuação)
Imagine que, em uma situação qualquer de uma acusação, um grupo, uma pessoa, resolve tomar para si a função de dizer quem é culpado e quem não é, quem merece morrer e quem não merece, o que temos? Temos aqueles comentários do blog. É a turba, a massa revoltada. Lembra-nos aqueles linchamentos que aconteciam aos suspeitos ou acusados que eram encontrados por populares no velho oeste americano. Lembra-nos os esquadrões que ainda hoje atuam por esse Brasil afora. A diferença está em quem decide quem é culpado ou inocente. Quem decide? Com base em que? Sendo culpado, o que acontece com o acusado? È por isso que é preciso resguardar o Estado de Direito, sob pena de cada vez menos confiarmos na justiça. E se não confiarmos na justiça, resta-nos fazer justiça com as próprias mãos. Talvez por isso os comentários do blog sejam tão revoltados, porque as pessoas de uma maneira geral não confiam na justiça que temos e o Estado de Direito é uma piada de mau gosto. O que teria acontecido com aquele rapaz, se estivesse vivo e tivesse sido julgado? Teria sido solto, sob condicional, por ser réu-primário? (estou especulando, não sei detalhes do rapaz). Todos conhecemos algum caso em que criminosos são soltos, e até ameaçam a família das vítimas…O fato é que o Estado de Direito tem falhado desgraçadamente. Para muitos de nós, o assassino está morto e o problema acabou ou durará somente pelo tempo em que o caso ficar na mídia. Depois dormiremos todos tranquilos, até que outro aconteça (o último que lembro ter causado sentimentos parecidos foi o assassinato da Jéssica, há alguns anos). Se algo que não o suicídio (pois isto é difícil prever) aconteceu a este rapaz, o Estado de Direito falhou pelos menos três vezes. Falhou com o acusado, por não levá-lo a julgamento; falhou com a vítima, por não ter permitido que ouvíssemos a sua voz e a sua dor, na pessoa do promotor de justiça; e falhou conosco, sociedade, por não permitir nos pronunciarmos no julgamento através do júri e mais uma vez apresentou um sistema de justiça fragilizado. Não culpemos os Direitos Humanos porque eles estão tentando assegurar o básico. Sem isso, não é possível avançar. O Estado de Direito não pode estar sob suspeita, pois corremos o risco de alimentarmos um monstro: a violência institucionalizada. Temos lembranças recentes desse mal e sabemos das suas consequências. A justiça precisa funcionar para culpados e inocentes e precisa ser seguida conforme definimos constitucionalmente e nas leis posteriores e isto não pode ser alterado conforme o gosto ou a opinião ou a raiva de terceiros. O cidadão tem o direito de expressar sua opinião e sua revolta, mas o Estado e seus agentes não podem estar sob suspeita de agir como se não houvessem leis. Ou não poderá exigi-las de ninguém e voltaremos à barbárie. Se é que algum dia saímos dela.
Eu, particularmente, acredito que você, Moisés, como deputado, pode tentar apurar o que aconteceu dentro daquela cela. Não por causa do morto, que para este já não há solução possível. Mas sobretudo em honra da vítima, que foi calada mais uma vez e da sociedade, que foi impedida de fazer justiça e de se fortalecer para enfrentar casos como esse no futuro. E porque talvez ainda haja tempo de salvar o moribundo Estado de Direito.